Vendo o trailer do filme novo do Michael Mann finalmente atentei de que Mann está narrando a mesma versão da história de John Dillinger que John Milius contara em 1973. O Dillinger de Milius permanece um dos melhores, e menos vistos, filmes narrativos saídos dos EUA no começo dos anos 70, a começar pela sempre magnífica presença de cena de Warren Oates (no que talvez seja seu melhor momento longe de Monte Hellman). A verdade é que de todos os cineastas da sua geração, Milius foi quem melhor dialogou com a história do cinema americano (Dillinger é John Ford feito na AIP sem nenhum pouco da pompa cinéfila que outros emprestariam para tal idéia) e quem melhor lidou, a partir do seu ponto de vista bem própria, com uma idéia de EUA que parece tão importante a seus contemporâneos. Escrevi sobre Milius para a Contracampo e reproduzo os dois parágrafos sobre Dillinger:
Há dentro do cinema de Milius um desejo pelo herói, por construir o mito de um grande herói americano. Mito este que parece só poder se completar na guerra. Mesmo em alguns dos seus roteiros anteriores a passagem para direção (Perseguidor Implacável, Apocalypse Now), este esforço já está de certa forma se esboçando. A partir de sua passagem para a direção este processo de mitificação fica mais claro. Vejamos a cena de abertura de Dillinger. O famoso ladrão (Warren Oates) invade um banco gritando “Vocês estão sendo assaltados por John Dillinger. Os poucos dólares que vou roubar vão te comprar várias histórias para contar para seus netos. Este pode ser um dos grandes momentos da sua vida, não faça com que seja o último”. Tanto Dillinger quanto o policial que o persegue, Marvin Purvis (Ben Johnson) parecem ter a consciência de que a guerra que travam também é uma guerra de manchetes, onde a suas respectivas imagens diante da opinião pública contam tanto quanto a caçada que um empreende ao outro.
Se Dillinger é o melhor dos filmes de Milius, isto talvez se dê justamente por ser aquele onde estes objetivos fiquem melhor traçados e equilibrados, além de ser aquele onde a sua visão de mundo e talvez em especial a parte dela que nem ele mesmo parece ter controle, melhor se apresenta. Primeiro, o diretor toma um ponto de partido raro, se não único no gênero, para narrar a história do mais famoso ladrão de bancos americano, ele adota o ponto de vista de Purvis, o homem que o caçou impiedosamente. E é assim que se dá o início do filme, nossa posição diante de Dillinger é sempre estranha, vemos um homem falastrão, violento e distante. Como se Milius partiu para o projeto para fazer um revisionismo na figura habitual do gangster carismático. Então algo acontece e Dillinger começa a se tornar progressivamente mais humano, envolvente e por fim, carismático. O filme nunca abandona o ponto de vista de Purvis que segue sendo nosso primeiro olhar sobre a história, mas Dillinger deixa de ser o vilão para ser um anti-herói. E o filme deixa de ser a construção do mito do grande policial Purvis que caçou vários dos bandidos mais perigosos do seu tempo — além de Dillinger, ele arranjou tempo de perseguir quase toda a lista dos 10 mais procurados da época e o filme quebra sua narrativa há todo momento para mostrar a sempre heróica captura ou execução de um deles –, e se torna também a construção de um outro mito, o do grande anti-herói John Dillinger. Quase como se Milius tivesse partido para detonar o seu biografado e no meio do projeto se apaixonado pela figura dele. No final não só Purvis admite que passou a nutrir um grande respeito por ele (respeito este não estendido aos outros gangsters, em especial a um demente Baby Face Nelson, não só morto por Purvis, mas antes humilhado pelo próprio Dillinger) como a posição entre a policia e os gangsters começa a se confundir (o gerente do cinema de onde Dillinger sairá para a morte e o mito, confunde os policiais que o esperam a paisana com bandidos).
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