Marighella não é propriamente um filme que existe por si só. Há muitas formas de olhar para ele e todas elas contaminadas por uma série de elementos extracampo. A começar pela própria figura de Carlos Marighella de tantas associações simbólicas e claro do arrastado processo de lançamento recheado de questões burocráticas que fizeram com que o filme do Wagner Moura chegasse aos cinemas brasileiros cerca de dois anos e meio depois do seu lançamento na competição do Festival de Berlim. Num extremo e no outro o filme acaba dominado por significantes quase todos apontando para uma ideia simbólica de resistência. Não deixa de ser curioso que no meio dessas projeções exista um filme que não parece se adequar muito a elas.
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Anselmo Duarte não é só um mito
Alguns meses atrás, a ótima plataforma Cinelimite promoveu uma retrospectiva com os primeiros quatro longas de Anselmo Duarte. É uma oportunidade rara de voltar a figura de Duarte cineasta oposta a figura do “O Homem da Palma de Ouro” (para ficar no título da biografia do Luiz Carlos Merten) já que dentro do cinema brasileiro Anselmo ocupa este espaço da profecia anunciada, um mito fulgurante sobre qual as histórias de conquista e apagamento se sobrepõe ao cinema. Dele se assiste somente O Pagador de Promessas, e mesmo este existe sobretudo pelo evento, o prêmio, as críticas de Glauber etc. e menos pelo que o filme é. Com que frequência, por exemplo, ao se tratar do filme de que ele é sobre muitos aspectos mais engraçados que a suposta chanchada Absolutamente Certo? A narrativa túrgida se impõe por demais sobre ele para permitir tais observações.
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Mostra 2021: Dicas
Este é meu post anual de dicas da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Os critérios são os mesmos dos últimos anos: uma série de listas de 10 filmes mais ou menos preferencial são 5 listas mais uma sexta com 10 brasileiros e um listão com outros filmes de interesse. O que tem asterisco eu já vi, o resto é puro achismo com base em relação com filmografias previas, comentários de amigos, coisas que eu li etc. e claro bastante pessoais, então sugeriria usar como ponto de partida e não de chegada. A Mostra este ano é híbrida entre presencial e online e os títulos com MP do lado foram os que foram divulgados como parte do sistema de streaming. Além disso tem um curta-metragem novo do Tsai Ming Liang que vai ser exibido presencialmente junto do Almodovar (que eu achei bem fraco) e um da Barbara Paz e um curta do Gabe Klinger que imagino passe com o filme da Mia Hansen-Love. Outro destaque imperdível é a retro do cineasta português Paulo Rocha que para quem for aos cinemas me parece imperdível.
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A Máscara Vazia: Sonhos Cosmopolitas de uma Indústria Marginal
Este texto foi originalmente publicado no catalogo da retrospectiva No rastro do crime: o cinema policial brasileiro que aconteceu no CCBB de Brasilia em Agosto de 2018. Republico aqui na ocasião da morte do Tarcisio Meira que protagonizou os três filmes sobre os quais me foco.
Em, O marginal (1974), o pequeno gangster Valdo (Tarcísio Meira) circula entre casas noturnas e inferninhos a aplicar seus pequenos golpes, enquanto, durante as tardes, vai ao Jóquei Clube, aposta em cavalos e flerta com a socialite Beth (Vera Gimenez). O seu desejo de ascensão social não deixa de alegorizar o do próprio filme. Valdo tem um encontro com a sarjeta e uma saraivada de balas aos moldes do de Scarface, de Howard Hawks – mas o filme só sugere a estrutura de ascensão e queda de um gangster que o primeiro ciclo de filmes de gangster do começo do cinema sonoro convencionou, o mais importante já está lá no título: Valdo é marginal e do marginalia jamais sairá. O filme demonstrara a habilidade do artesanato do diretor Carlos Manga, e sua facilidade de se aproximar de uma linguagem do cinema americano de ação, no entanto, de alguma maneira, a promessa da superfície do filme jamais é entregue. Valdo sonha com a ascensão social, mas a marginalidade é seu lugar e o filme em si segue neste mesmo compasso: o Scarface tupiniquim interrompido por esta constatação.
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Favorite films of 1986
So, a couple months ago, I decided I’d like to do a list of favorite movies from a random 1980s year, and I ended up picking 1986. I ended staying much of the last couple of months watching/rewatching movies for the list below. It is rather long but I would not call it either exhaustive or objective and I think all of them are Worth seeing if They sound interesting for you. As I always like to reinforce when I make one of those, the actual is very personal and random and I would say I prefer the 24th more than 48th and that one more than 72nd, but I would not be so sure if I compare them to movies listed 3 or 4 slots ahead or below.
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Filmes Favoritos de 1986
Dois meses atrás eu decidi que faria uma lista de favoritos de um ano aleatório dos anos 80 e terminei escolhendo 1986. Passei os últimos dois meses vendo/revendo filmes do ano e montando a lista abaixo (creio que não tem mais que meia dúzia que eu não assisti em algum ponto da última década). Ela é bem longa, mas não diria exaustiva ou especialmente objetiva e acredito que todos eles valem ser vistos por quem se interessar por eles. Como sempre gosto de reforçar nessas listas a ordem é bem pessoal e aleatória e se eu diria que gosto mais do 24º do que do 48º e que este que o 72º, não teria a mesma certeza quando comparado a filmes que ficaram 3 ou 4 posições acima ou abaixo de qualquer um deles.
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Sobre Cowboys Solitários e Mitos Revisitados
Monte Hellman faleceu mês passado e gravamos um programa especial do Detour em homenagem. Aproveito a oportunidade para republicar um panorama histórico da Nova Hollywood que escrevi para o catalogo da mostra Easy Rider – O Cinema da Nova Hollywood que escrevi em 2015 e no qual Hellman ocupa papel central.
“Nova Hollywood” é uma expressão que ao longo do tempo ganhou tamanho peso – a ponto de ser uma peça de di vulgação pronta a ser acoplada a qualquer filme do período que se deseje promover – que perdeu seu significado original e se tornou no imaginário cinéfilo o símbolo de um suposto momento melhor no cinema americano. Seu significado original, perdido num desejo nostálgico. Existem várias possíveis “Novas Hollywoods” e os recortes históricos feitos sob o período terminam inevitavelmente por refletir sobre os interesses dos responsáveis tanto quanto sobre os filmes.
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Os Sete Gatinhos
Aproveitando que a Cinemateca do MAM está com uma retrospectiva virtual da obra do Neville D’Almeida até o próximo dia 15, republico aqui um pequeno texto sobre Os Sete Gatinhos que escrevi para o catálogo da ultima retrospectiva do Neville uns 5 anos atrás (duas retros do Neville em uma década quase acredito que o cinema brasileiro tem jeito).
Jairo Ferreira costumava dizer que Neville D’Almeida era o único cineasta brasileiro mestre tanto no underground quanto no cinemão. É uma provocação útil diante de Os Sete Gatinhos, provocação maior da obra de Almeida. A superfície pretensamente naturalista a despeito do material apocalíptico do texto do Nelson Rodrigues (um dos seus mais míticos textos de dissolução familiar), o encontro da comédia de costumes carioca com a pornochanchada, tudo em Os Sete Gatinhos aponta para uma extensão do sucesso de A Dama do Lotação. Estamos afinal no começo dos anos 80 quando Nelson Rodrigues se tornou desculpa esfarrapada para nosso cinema comercial fazer pornochanchada de luxo, pensemos na versão grotesca de Bruno Barreto para O Beijo do Asfalto ou posteriormente nos filmes da Conspiração Traição e Gêmeas ou a série global A Vida Como Ela É, todos seguindo a formula consagrada por Arnaldo Jabor no seu Toda Nudez Será Castigada. Nelson Rodrigues é sempre a desculpa mais fácil ao audiovisual brasileiro vender a própria grosseria como arte.
Nada, porém, seria mais diante de Os Sete Gatinhos, estamos aqui diante de um instrumento grosseiro e direto: da superfície de pornochanchada o que sugere é uma sequência de imagens agressivas e lascivas de desintegração familiar e social. Longe de usar Rodrigues como um escudo de prestigio, chafurda-o na lama. A obsessão pela pureza do texto original se torna uma piada ainda mais mordaz a partir do olhar sujo de Almeida. O que impressiona e choca em Os Sete Gatinhos e lhe garante uma dimensão política é que a decadência aqui é dada como fato, um estado natural tanto para personagens como público. Neville D’Almeida localiza no texto de Rodrigues menos os contornos da tragédia – perde-se aqui boa parte da individualidade das irmãs que resistem mais como corpos conscientes da própria exploração, assim como boa parte da riqueza dramática da sub trama com Bibelot – do que a sua superfície. No lugar de abrir a peça, como a convenção das adaptações teatrais mandam, Almeida a concentra ainda mais naquela sala de estar familiar. Os Sete Gatinhos não se propõe como drama tal qual A Dama da Lotação, mas uma coleção de esquetes de degradação. O que resiste na memória do filme são as irmãs seminuas a desrespeitar o patriarca Lima Duarte ou o grande Mauricio do Valle engatinhando como um cão a perseguir uma cadela no cio.
Os Sete Gatinhos propõe a sátira social como um filme de terror. Sua maior qualidade é sua brutal honestidade, é um filme feio e medíocre e sabe disso, esta é sua força e permanência. Sua notoriedade, a forma como frequentemente é mencionado como exemplo de porque o cinema brasileiro é/foi péssimo reforça o seu sucesso. As suas imagens grosseiras partem do cinemão e retornam ao undeground. Se há algo a se dizer contra Os Sete Gatinhos é que mais de três décadas depois com a pornochanchada tão distante de um imaginário de cinema popular, seu efeito se dilui um pouco, suas imagens, porém, seguem carregadas de uma inegável força.
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Benny Chan – An Annotated Filmography
News of Benny Chan passing away last August came as a shock to all fans of Hong Kong cinema. I wouldn’t count him as one of my favorite local filmmakers or anything, but he was one of the more consistent action directors of the past three decades and his filmography has given me many moments of pleasure through the years. As I often defend that film history shouldn’t be limited to masterpiece hunting, it seems worth to pay some attention to a “minor” filmmaker like Chan. His filmography is a particularly fascinating mirror of the past three decades of local filmmaking as his early work was heavily involved with a few heavy-hitters (Johnnie To, Tsui Hark, Jackie Chan, Jeffrey Lau) and he later would be directly involved with attempts at the more cleaner action style of the early handover years and in the past decade after the local industry raised the white flag and mostly accepted to be assimilated by mainland film industry becomes one of the few filmmakers working with good budgets whose movies from the stars to their idiosyncrasies still suggested Hong Kong cinema first. It is an intriguing movement as midway through Chan’s career his name likely bring to mind to quite a few western fans “the decay of Hong Kong film” with his association with bland young stars, streamlined narratives and the lack of intensity one might associate with Woo or Tsui, as someone who thought people was unkind to Chan at the time, 15 years later he feels far more clear like his own man and if he will probably be more artisan than auteur, he was around Hong Kong sets when a lot of interesting moments and performances happened and that counts for a lot for me.
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Benny Chan – Uma Filmografia Comentada
A notícia da morte de Benny Chan no último mês de agosto pegou a todos os fãs do cinema de Hong Kong de surpresa. Eu não diria que ele era um dos meus diretores locais favoritos ou nada do tipo, mas ele é um dos diretores de filme de ação mais consistentes das últimas três décadas e seus filmes me proporcionaram muitos momentos de prazer. Como sempre defendo que história do cinema não deveria se limitar a caça de obras primas, me parece relevante prestar atenção a um cineasta “menor” como Chan. A sua filmografia é um espelho particularmente fascinante das últimas três décadas do cinema local, já que seus primeiros filmes são muito diretamente associados a alguns figurões (Johnnie To, Tsui Hark, Jackie Chan, Jeffrey Lau) e ele depois estaria diretamente envolvido em tentativas de desenvolver um estilo de ação mais limpo nos primeiros anos após a devolução a China, e na última década depois que a indústria de Hong Kong hasteou a bandeira branca e majoritariamente aceitou ser absorvida pela indústria da China continental, ele se tornou um dos poucos cineastas trabalhando com bons orçamentos cujos filmes das estrelas as suas idiossincrasias ainda sugeriam o cinema de Hong Kong antes de mais nada. É um movimento intrigante já que pela metade da carreira de Chan seu nome provavelmente trazia a cinéfilos ocidentais uma referência direta a “decadência do cinema de Hong Kong” com sua associação a jovens estrelas sem sal, narrativas simplificadas e a falta de intensidade que pode se associar a um Woo ou Tsui, como alguém que achava que se era cruel com Chan naquela época, 15 anos depois ele me parece muito mais claramente um cineasta distinto e se ele será sempre visto mais um artesão do que autor, ele estava em sets de Hong Kong quando muitos momentos e atuações interessantes aconteceram e isto conta bastante para mim.
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Marginal sem Dor
Escrevi essa crítica de Tatuagem para a Cinética quando o filme teve as primeiras exibições públicas no Festival do Rio de 2013, como ele segue muito popular e entrou no Netflix achei boa ideia repostar aqui no blog.
Tatuagem, de Hilton Lacerda, se encerra na estreia de um filme experimental protagonizado pelo grupo de artistas no centro do filme e dirigido por um intelectual amigo deles, mantido sempre às margens da ação. Há um tom agridoce nas imagens deste filme dentro do filme que sugere menos um pastiche deste tipo de cinema do que um último super-8 perdido filmado entre amigos, suas imagens transbordando uma nostalgia que trai o quanto elas só podem pertencer a 2013. São imagens que dizem muito sobre o projeto de cinema de Tatuagem: trata-se, afinal, de um filme que se desdobra sobre um universo visivelmente caro ao seu diretor, que não perde um plano como oportunidade de declarar seu afeto por tudo que transpõe para a tela.
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My Favorite Films of 2020
It was a strange year, but still I’ve seen a lot of films and plenty of good ones. I think the end of the list is a little weaker than last year’s, but I decided it was better to keep the number and anyway I like every film and they are worth seeing. As usual the criteria is films seen for the first time through this year that get their first public screening in the past three years. The positions don’t matter much, I certainly like 32nd more than 52nd but I’m not sure if I like it better than the 34th, so they are more organized by zones than positions.
First this year’s shorts: my favorite one was Joshua R. Troxler’s If You Could Go Back, I Would See Her. A fascinating investigation on digital images through some essential elements. Another ten shorts that I loved: Corman’s Eyedrops Got Me Too Crazy (Ivan Cardoso), La France Contre les Robots (Jean-Marie Straub), Garden City Beautiful (Ben Balcom), Now, at Last (Ben Rivers), On an Island (José Luis Guerin), Personal Growth (Maximilian Le Cain, Vicky Langan), República (Grace Passô), Sebastian and Jonas Leaving the Party (Ken Jacobs), A Story From Africa (Billy Woodberry), The White Death of the Black Wizard (Rodrigo Ribeiro).
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Meus Filmes Favoritos de 2020
Foi um ano muito estranho, mas ainda assim muitos filmes vistos e muita coisa boa. Creio que a parte final da lista é um tanto pior que a do ano passado, mas achei por bem manter o número e são todos filmes que eu gosto e merecem ser vistos. Como sempre o critério são filmes vistos pela primeira vez este ano exibidos pela primeira vez nos últimos três anos. As posições não importam tanto certamente gosto do 32º mais do 52º mas não tenho certeza de que gosto dele mais que do 34º, então os filmes estão mais organizados por áreas que posições.
Primeiramente os curtas: o meu curta favorito do ano foi If You Could Go Back, I Would See Her. do Joshua R. Troxler uma investigação fascinante sobre imagem digital a partir de alguns elementos essenciais. Outros dez curtas de grande impacto: O Colírio de Corman me Deixou Doido Demais (Ivan Cardoso), De Una Isla (José Luis Guerin), La France Contre les Robots (Jean-Marie Straub), Garden City Beautiful (Ben Balcom), A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Rodrigo Ribeiro), Now, At Last (Ben Rivers), Personal Growth (Maximilian Le Cain, Vicky Langan), República (Grace Passô), Sebastian and Jonas Leaving the Party (Ken Jacobs), A Story From Africa (Billy Woodberry).
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São Paulo International Film Festival – Part 4
Part 1
Part 2
Part 3
Versão em português
Last part of the festival coverage with films seen in its last few days plus some final observations.
Chico Rei Among Us (Joyce Prado)
Early on Chico Rei Among Us, one of the interview subjects talk about how hard it is to establish Chico Rei history with official historians because they are obsessed with documented truth. That is something that Brazilian Black history Always marginalized and erased often lacks. Joyce Prado’s documentary uses Chico Rei exactly to deal with this erasure and the many ways Brazilian official history follows a whitewashing process that systematizes this erasure of Black roles in diverse areas like their contributions to mining engineering or the origins of São Paulo neighborhood Liberdade (now known as the Japanese neighborhood but the site of the early Black quilombos). Director Prado moves with great ease between the believe on oral history, strong research and smart editing. It is a film that Works well the places of contact among religion, economy and race throughout the country’s history.
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Mostra Internacional de São Paulo – Parte 4
Primeira parte
Segunda parte
Terceira parte
English version
Parte final da cobertura da Mostra com os filmes vistos nos últimos dias do evento e uma observação geral.
O Ano da Morte de Ricardo Reis (João Botelho)
Ao longo de quatro décadas João Botelho vem tocado um projeto maneirista com um gosto pelo artifício e gesto teatral que não está muito distante de outros colegas portugueses, as vezes dá mais ou menos certo (o filme que ele fez a partir de Os Maias que passou na Mostra de 2013), as vezes soa só aborrecido (como quando filmou Pessoa em O Filme do Desassossego em 2010). Aqui filma um romance de Saramago sobre Pessoa e seu pseudônimo Ricardo Reis no momento que a Europa mergulha no fascismo e se o material está a mão, o filme vai aos poucos afundando no auto referencial do tique autoral que reforça que Botelho pode sonhar com Oliveira, mas existe como uma cópia pálida e sem vida.
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