Aventuras em série de uma máquina de matar cega

Lute, Zatoichi, Lute

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Esta semana terminei finalmente de ver os 25 filmes da série Zatoichi e me parece que estes filmes valem algumas observações que são sobre eles, mas também sobre a ideia da narrativa seriada e repetição no cinema popular.  Estes filmes foram realizados entre 1962 e 1973 pelos estúdios Daiei (casa dos últimos filmes de Mizoguchi) e protagonizados por Shintaro Katsu como um samurai cego errante chamado Ichi. Eles têm essencialmente a mesma trama que o espectador ocidental pode aproximar de um western: Ichi chega a uma nova cidade tomada ou por gangsteres ou por um ricaço poderoso que emprega criminosos para oprimir a população local, Ichi tenta não se envolver, mas se aproxima dos locais e acaba obrigado a um confronto. Existem algumas variações, às vezes Ichi encontra problemas na estrada, fracassa em salvar a vida de alguém e chega no povoado com uma dívida, mas o arco dramático de estabelecer terreno novo, hesitação e por fim ação é respeitado sempre. As cidades e as pequenas estradas são as mesmas. Os tipos que ele cruza tem algumas pequenas variações. Os primeiros dois filmes são preto e branco e os demais em cores, salvo de um filme especial na virada da década, nenhum deles tem mais de 96 minutos e a maioria não passa dos 90.

É cinema industrial bem consciente do seu lugar, dois ou três filmes por ano, poucas tentativas de inventar a roda, existem aventuras de Ichi melhores e mais inspiradas do que outras, mas porque elas nunca se afastam muito de uma zona de segurança não existem maus. Os mais esquecíveis Zatoichis ainda entregam a presença de Katsu e pelo menos um par de muito bem coreografados duelos de espada. Os filmes seguem a fórmula com tanto cuidado que quando no final dos anos 60 começamos a notar que eles já estão reciclando os mesmos particulares pela terceira ou quarta vez, é fácil se distrair focando nas pequenas diferenças entre eles. A repetição não deixa de ser parte da experiência. De fato, Zatoichi não terminou em 1973, quando os retornos de bilheteria começaram a diminuir, Katsu moveu o personagem para televisão por mais quatro temporadas.

Se Zatoichi é conhecido no ocidente certamente é pela refilmagem protagonizada e dirigida por Takeshi Kitano em 2003. É o filme de Kitano do qual eu menos gosto, todo o cuidado formal, e cores, movimento e som são por vezes formidáveis parecem estar lá para disfarçar que Kitano está um tanto entediado com a encomenda e se ele parece ter uma afeição por ter assistido os filmes de Katsu na juventude (antes ele já fizera uma sequência paródica na sua ótima comédia absurda Getting Any?), mas ver os filmes originais reforça que ele não tem muita ideia do que fazer com o personagem. Foi um sucesso considerável no Japão, bem maior que os filmes de Kitano dos anos 90, onde Ichi permanecia popular (Katsu reviveu o personagem pela última vez em 1989) e ajudou a criar um certo culto por aqui. Sem o filme do Kitano, a série certamente não estaria disponível nos EUA pela respeitável Criterion. Por aqui, por sinal, a Versátil vem aos poucos lançando os filmes e recentemente disponibilizaram o box 3 que chega na metade da série.

Menciono o filme de Kitano para destacar que Zatoichi não é exatamente uma série autorista. Se existe uma voz que domina os filmes é a presença de Katsu, ator mais físico do que aparenta e dotado de grande senso de humor sempre pronto a resgatar os filmes dos seus momentos mais turgidos. Um grupo de cinco diretores realizou a maioria dos filmes com Kenji Misumi e Kimiyoshi Yasuda cuidando de meia dúzia cada e Kazuo Mori, Tokuzo Tanaka e Kazuo Ikehiro 3 cada um. O próprio Katsu dirigiu muito bem o penúltimo filme (Zatoichi em desespero, 1972) marcado por soluções formais surpreendentes que abstraem muitos dos elementos recorrentes e faz uma desconstrução mais elaborada que muitas das tentativas mais diretas. Akira Inoue, outro artesão de filmes de samurai, dirigiu um dos filmes menos inspirados (A Vingança de Zatoichi, de 1965) e não foi chamado de volta. Dois nomes mais consagrados, Satsuo Yamamoto e Kihachi Okamoto contribuíram com filmes tardios para a série.

Okamoto é claro de longe o nome mais consagrado a passar pela série, responsável por A Espada da Maldição, um dos filmes mais ambiciosos do gênero. Seu filme é um evento especial, Zatoichi encontra Yojimbo, com Toshiro Mifune fazendo uma variação do personagem do filme de Kurosawa. Não é o menos inspirado filme da série, existe profissionalismo de sobra, mas é o menos interessante, um filme ao mesmo tempo mais corrupto e mais sério do que habitual. É gordo (115 minutos) e um tanto pesadão no negociar dos muitos elementos em cena, certamente frustra quem quer ver Mifune retornar um dos seus personagens mais famosos (apesar de ele estar divertido numa chave auto paródica) e ao mesmo tempo que coloca Katsu de escanteio com muita frequência. É um filme por vezes entediante o que eu não diria de nenhum outro filme da série, apesar de um grande duelo final, com Okamoto usando seu talento de encenador para manter as duas estrelas felizes.

Bem melhor é Zatoichi o Fora da Lei (1967) do Satsuo Yamamoto. O diretor, que é mais conhecido no ocidente pela épica série Guerra e Homem do começo dos anos 70, é um veterano cuja carreira começou nos anos 30 e um conhecido militante do partido comunista japonês. É o primeiro filme co-produzido por Katsu e ele visivelmente quis fazer algo diferente e mais ambicioso ao trazer Yamamoto. O diretor respeita a maior parte das expectativas da série, mas explicita que o texto posiciona Ichi de forma bem direta como o campeão do povo que protege um grupo de camponeses entre dois gangues rivais. O filme deixa claro ser sobre exploração e poder, tem discussões sobre trabalhadores se organizarem, reforça de que tem paralelos contemporâneos etc. Só que Yamamoto e Katsu sabem tomar o cuidado para não transformar o filme numa assembleia, ele pode ser mais discursivo, mas ainda é um filme de Zatoichi. Mesmo quem não conhece Yamamoto percebe que tem algo diferente neste, mas se você só quer Ichi envolvido em outra aventura cortando ao meio alguns criminosos, o filme mais do que entrega. Mesmo a trama é só uma variação mais simbólica de terreno conhecido, este está longe de ser o único filme em que Ichi enfrenta capitalistas exploradores, só se calha de ser o único em que eles são chamados assim.

Quando digo que Zatoichis não são filmes especialmente autoristas não é para desmerecer os homens que os assinaram, mas para reforçar que se os filmes terminam com um olhar bastante coeso isto não é por conta de um ponto de vista forte, mas de como o cinema popular pode por vezes se desenvolver por caminhos bem próprios. Se as aventuras de Ichi se mantêm constantes, isto passa por empregar um grupo bastante talentoso de diretores de ação. Kazuo Mori por exemplo começou a dirigir filmes de samurai ainda no cinema silencioso e seu nome nos créditos é garantia de ao menos uma aventura muito bem costurada, ele é responsável para ficar num filme por A Vingança do Samurai, de 1952, um dos melhores filmes de Mifune, a partir de um roteiro de Kurosawa.  Os Zatoichis fazem muito bom uso da cegueira de Ichi como motor das cenas de ação, explorando muito bem o som e a escuridão e incorporando-as à física dos seus movimentos. Assistir mesmo aos filmes menos inspirados da série é se encantar com quantas variações encontram-se para o cenário de Ichi confronta uma grande gangue. E é sempre surpreende como os filmes constantemente acham momentos de respiro em que Ichi é tomado pela melancolia.

Principalmente Katsu deu a sorte de contar com Kinji Misumi que dirigiu o primeiro filme da série e seguiu uma presença frequente nela. Um formalista formidável  (se tiverem a chance assistam O Filho do Destino de 1962) com grande aptidão para tramas fatalistas e mórbidas sobre homens violentos atraídos pela morte. Há cineastas melhores que fizeram múltiplos belos filmes sobre samurais (Akira Kurosawa, Tomu Uchida), mas com a possível exceção de Hideo Gosha nenhum que tenha se dedicado com tanto afinco a ele. Misumi começou a carreira como assistente de Teinosuke Kinugasa, com quem dividia um gosto pelo pictorialismo, e ao contrário dos grandes nomes do cinema novo japonês nunca se colocou contra a tradição. Bem pelo contrário, seu apelido na Daiei era “pequeno Mizoguchi”. Um dos seus melhores filmes, A Lamina Diabólica de 1964, era sobre um jardineiro que se descobre um mestre espadachim e era forçado a trocar as flores pela morte. Suspeito que seja um comentário não tão acidental sobre seu próprio realizador.

As contribuições de Misumi são visualmente muito caprichadas, mas se destacam também pelo seu desespero e tristeza. Zatoichi Samiritano de 1968 coloca ele como guarda costas de uma jovem cujo irmão ele assassinou injustamente e o filme se constrói na dinâmica desconfortável entre os dois e na presença da atriz Yoshiko Mita e seu horror de ter que confiar em Ichi. Misumi encontra bastante humor naquele casal forçado, ao mesmo tempo que reforça a melancolia da situação. Em outra chave, Zatoichi e o jogador de Xadrez (1965), usa a ideia do jogo como metáfora para uma série de movimentos defensivos do samurai num mundo ainda mais opressor que de costume.  Ele também é responsável pelo melhor filme da série Lute, Zatoichi, Lute (1964), no qual Ichi termina cuidando de um bebê com ajuda de uma ladra. A ideia do desejo da domesticidade perpassa o filme, que a despeito do filme não tem quase ação alguma (apesar de uma muito memorável onde nem o fogo é capaz de parar samurai cego), e Misumi e Katsu acham tantas variações para as dinâmicas daquela família fictícia quanto costumam achar para as cenas de ação. Lá pelo meio do filme há uma cena maravilhosa que todo mundo comenta, o bebê órfão não para de chorar então Shintaro Katsu o pega no colo e oferece seu peito para ele simular mamar, a imagem de Ichi “amamentando” é de um absurdo cômico notável, só que ao mesmo tempo de uma tristeza devastadora.

Lute Zatoichi Lute estabeleceu uma das certezas da série, que Katsu mais crianças é sempre uma fórmula vencedora e se tornou recorrente colocá-lo para cuidar de alguma. Três anos e 9 filmes mais tarde, Misumi e Katsu basicamente refilmaram o filme em Zatoichi Desafiado, mas desta vez com um garoto pequeno e não um bebê. Uma das coisas mais fascinantes de se assistir a todos os Zatoichis é justamente a combinação de repetição e tempo deles. Estes filmes não se preocupam com continuidade como muitas séries contemporâneas, não existem referências diretas aos filmes anteriores, os realizadores compreendem que Ichi observar que esta não é a primeira vez que promete a uma mãe no seu leito de morte que vai reunir filho e pai não é produtivo. Mas existe uma continuidade emocional neles, a série nunca se dedica a algo tão tolo como explicar Ichi, mas sua relação com seu mundo e as tramas estáticas que ele se confronta se transformam. O já mencionado Zatoichi Samiritano por exemplo recicla elementos de Zatoichi e a Espada Brilhante  (1964), mas uma dúzia de filmes depois ele é um homem muito mais amargo e desesperado então a dinâmica é outra.

Claro que Ichi não pode mudar de fato porque Katsu e seus comparsas sabem que tem que entregar o que seus espectadores esperam. A graça dos filmes se torna cada vez mais como desenvolver esta ilusão de mudança, como Ichi pode se mover sem que suas ações se transformem. No começo, é uma questão de mito: Ichi é cada vez mais esvaziado filme a filme enquanto sua fama na região cresce. Calha de que o Japão só tem um samurai cego que gosta de jogar dados, então algumas gangues vem as possibilidades da fama de se livrar dele ou no ótimo Zatoichi e o Baú de Ouro (1964) que transforma em gag a ideia de que muitos hesitam em puxar uma espada contra ele tão certos estão de que se trata de uma sentença de morte. Nos anos finais a série se torna um tanto enamorada demais por convidados especiais. Já mencionei Mifune, e ele foi seguido Tatsuya Nakadai numa variação do seu samurai cínico e destrutivo, um confronto de ideias sobre personagens, no excelente Zatoichi vai ao Festival de Fogo (1970) e um encontro o espadachim de um braço só de Jimmy Wang Yu que oferece um bom contraste entre o filme de samurai japonês e o wuxia chinês e as diferentes tradições que eles representam.

Por volta de Lute, Zatoichi, Lute, a série encontra a ideia de que Ichi é ao mesmo tempo consciente e cansado da sua posição como máquina de matar. É como se os realizadores começassem a se cansar da fórmula rígida e passassem isto para seu personagem. Deste ponto em diante Ichi é um homem desesperado com as histórias circulares que se envolvem. A certa altura ele até descobre que sua espada está partindo por excesso de uso. No excepcional Zatoichi’s Vengeance (que não sei como será lançado por aqui porque a série usou este título duas vezes), os dois papéis favoritos de Ichi, o de protetor assassino e figura paterna entram em conflito e ele descobre que pode ser uma má influência. O filme se torna uma comédia de ação sobre um personagem que tenta desesperadamente não fazer o que seus fãs querem que ele faça e o que poderia ser um defeito, a inevitabilidade do retorno a ação, se torna tema do filme.

Na segunda metade da série Zatoichi se torna um acidental texto modernista sobre um personagem que intui que está condenado a seguir variações da mesma trama violenta. Os filmes não quebram a quarta parede é óbvio, mas o duelo entre o desespero de Katsu, ator e personagem, e o nosso desejo por mais Ichi se torna tensão recorrente que os anima. Sem que com isso os filmes caiam na saída fácil de culpar o espectador, já que ele nos convida para um jogo lúdico e não de apontar o dedo. Nossas expectativas e as maneiras que os responsáveis encontram para preenchê-las sem se entediar estão sempre bem visíveis na tela. O cinema popular japonês dos anos 60 tinha muitas séries, até Kurosawa fez uma sequência para Yojimbo, geralmente de samurai ou yakuza, mas Zatoichi se destaca pela sua longevidade. Por exemplo, Ken Takakura se tornou uma estrela com duas séries que começou a protagonizar em 1965, A Prisão de Abashiri (10 filmes até 1967) e Contos Brutais de Honra (9 filmes até 1972). 25 filmes em cerca de doze anos, porém é uma extensão incomum apesar de que Yoji Yamada posteriormente arrastaria sua série de Tora san por mais de cinquenta capítulos. A Daiei foi à falência em 1971, então podemos dizer que Zatoichi é um produto de estúdio que sobreviveu ao próprio estúdio. Tal durabilidade sugere uma fidelidade imensa dos espectadores e acredito que isto acabe incorporado aos filmes. Zatoichi até tem um final de fato que reforça muito dos seus princípios com A Conspiração de Zatoichi (1973) no qual Katsu volta para sua cidade natal e descobrindo mais um espelho para as mesmas ações já que não cabe a um personagem de cinema voltar para casa, os termos são mais pessoais, mas não são, no fundo só mais uma aventura. Ichi, Katsu, cada talento atrás da câmera estão todos juntos na necessidade de continuar encontrando maneiras para as aventuras de Ichi possam continuar, um veículo constante para os prazeres violentos da plateia, a de se encontrar novas formas de se estendê-lo mesmo que se reconheça o desgaste dos procedimentos, o show precisa se perpetuar.

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