Mostra Internacional de São Paulo – Parte 1

Dias

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Segunda parte
Terceira parte
Quarta parte

Primeiro post com os filmes da Mostra cobrindo os vistos entre sexta, 23 e domingo, 25, alem de dois filmes vistos antes do evento começar.

Casa das Antiguidades (João Paulo Miranda Maria)
Casa das Antiguidades chegou por aqui chancelado por muitos elogios vindos da sua carreira em festivais internacionais, mas a julgar pelas conversas com amigos a recepção nessa estreia brasileira foi bem mais fria. Um filme fantástico com um pé no folclore e outro na assombração sobre a permanência do racismo e exploração na sociedade brasileira como m todo e no sul em particular. As referências são mais próximas as de Apichatpong do que filme de horror apesar da atmosfera constante de paranoia e ameaça. Casa das Antiguidades tem um elemento de força inegável que é a presença do veterano Antônio Pitanga que não fazia um papel central no cinema brasileiro a muito tempo e consegue alguns momentos inegáveis enquanto absorve a sua posição. Como um solo de Pitanga o filme tem seu interesse. A direção de João Paulo Miranda Maria é de um controle sistemático que sufoca Pitanga tanto quanto a sociedade sulista que ele precisa lidar. O filme faz pensar as vezes no cinema do Felipe Bragança, mas meio que vai na direção aposta, se Bragança lida com o mesmo universo de referências internacionais e desejo de carnavalizar a sociedade brasileira, seus filmes tendem a ser extremamente soltos, o filme de Miranda Maria é de um academicismo opressor que termina por eliminar qualquer potência inerente ao materal e a atuação de Pitanga.

Cidade Pássaro (Matias Mariani)
Uma agradável surpresa este primeiro longa de ficção do Matias Mariani. Um filme com uma visão forte de São Paulo, com ótimo uso de locações, sobretudo no centro, e uma compressão de como identidade e o ir e vir funcionam por aqui. É um filme de investigação, identidade e apagamento com um nigeriano vindo para cá tentar localizar o irmão que veio estudar por aqui e sumiu. O misto de procurar e se apagar é muito bem conduzido por Mariani. Há uma boa imaginação para lidar com situações e o universo cosmopolita da cidade. Ocasionalmente o filme sofre de ser fechado em excesso na sua sistematização e o truque de opor o corpo do protagonista contra uma paisagem arquitetônica opressora da cidade eventualmente se dilui, a despeita da fotografia muito boa do Leo Bittencourt. A maneira com que Mariani usa a propulsão da narrativa investigativa para alimentar a investigação indenitária que lhe interessa segura o filme mesmo nos pontos mais frágeis.

Dias (Tsai Ming-liang)
Desde que anunciou sua “aposentadoria”  na altura de Cães Errantes, Tsai Ming-liang liberto de fingir lidar com narrativa vem se concentrando mais e mais na presença física e no rosto do seu muso Lee Kang-sheng. Dias é neste sentido o ponto máximo de uma investigação estética que se depurou de forma cada vez mais austera. Se o estar no mundo de Lee Kang-sheng é o mote que domina o cinema de Tsai a três décadas, a maneira com que captura esta negociação é de uma fisicalidade táctil ainda mais radical. Lembro que no anterior Your Face mencionei que o cinema de Tsai vinha se aproximando do de Abbas Kiarostami e Eduardo Coutinho (cineastas da existência, de atuar como uma forma de ser) e Dias só reforça essa ideia na forma como está existência de Lee negocia a sua presença o tempo todo com a câmera. Curioso como os momentos mais banais do cotidiano dele trazem a mente os musicais apocalípticos O Buraco e O Sabor da Melancia quase sem tentar. A longa sequência da massagem é uma das melhores da carreira de Tsai.

Guerra (José Oliveira, Marta Ramos)
Não deixa de ser interessante que Guerra seja lançado no mesmo ano que Destacamento Blood do Spike Lee, os filmes tem alguns elementos em comum na forte influência de Samuel Fuller e no foco em como a permanência das guerras coloniais são observadas a partir de como afetam o corpo de um ator veterano. Claro quie também existem universos muito diferentes seja de orçamento, seja da posição de olhar (do branco europeu ao negro americano, da consciência da sua posição da metrópole colonialista para a ignorância que os americanos têm da deles) e mesmo algumas das suas posições políticas. Guerra está interessado sobretudo em usar os traumas da guerra colonial da independência de Moçambique como uma ancora dramática para José Lopes. O ator, que faleceu no começo do ano, é a razão de ser do filme, criar novas situações e permitir que ele reaja a elas é método de Oliveira e Ramos. Os cineastas são muito bem-sucedidos a medida que permitem um universo amplo de situações e reações a Lopes que retribui a confiança nele depositada com uma bela performance. O projeto estético do filme também é previsto na distância entre estes fantasmas do colonialismo e um espaço português contemporâneo desolado e despovoado e a maneira como ele articula isso não deixa de fazer pensar numa resposta tardia nostalgia colonialista com que Tabu do Miguel Gomes imaginava o Portugal contemporâneo.

O Livro dos Prazeres (Marcela Lordy)
Adaptação de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres da Clarice Lispector cujo grande trunfo é contar com Simone Spoladore no papel principal. O filme de Marcela Lordy é muito forte sempre que Spoladore está isolada lidando com suas dificuldades de se relacionar com o mundo e nestes momentos a cineasta e sua atriz encontram boas soluções para o drama de Lispector. O filme existe nessa passagem constante de auto analisar sua situação existencial para vive-la e geralmente é bem mais forte quando Spoladore contracena consigo mesma. Se a existência da professora de Spoladore é as vezes imaginada de forma um tanto clean e engessada (recorrência típica de certo cinema brasileiro), há momentos muito felizes de observação e Lordy encontra mais frescor do que o peso de “adaptação literária de uma autora importante” poderia sugerir.

Lua Vermelha (Lois Patiño)
Quando Armando de Ossorio encontra o experimental semi documental contemporâneo. Parte olhar sobre uma comunidade literonea espanhola, parte exercício em imaginar as dificuldades dela a partir das aberturas de um cinema com gosto pelo mítico e lovercraftiano. É um prazer ver Patiño num registro como esse já que o maior talento dele desde os primeiros curtas sempre foi o de invocar em planos de paisagem todo um universo fantástico, encontar o mítico na natureza. Lua Vermelha inclui alguns dos planos mais espetaculares do ano. Não é um filme para quem espera que os espaços de cinema permaneçam comportados cada um no seu canto, pelo contrário Patiño  me faz pensar tanto em Ossorio quanto em Guerin e Lua Vermelha é muito melhor por isso.

Mate-o e Deixe Esta Cidade (Mariusz Wilczyński)
Exercício muito pessoal de imaginar saídas para os próprios traumas pelas possibilidades da animação.  O imaginário de Mariusz Wilczyński se encontra em algum lugar entre um caderno de rascunhos de Federico Fellini e uma comédia desesperada do Roy Andersson, mas de forma ainda mais amarga do que tal descrição sugere. O traço da animação nunca deixa de nos envolver e Wilczyński cria alguns momentos bem fortes, mesmo que o filme não se sustente sempre por conta da sua estrutura irregular. Para quem curte cinema do leste europeu tem muito o que apreciar aqui.

Não Há Mal Agum (Mohammad Rasoulof)
Assim como seu colega Jafar Panahi, cada novo filme de Mohammad Rasoulof corre o risco de ser encarado exclusivamente pela sua posição de artista calado pelo regime iraniano, expressões de resistência que a plateia ocidental não deveria receber. Panahi optou desde Este Não é um Filme de tornar esta posição tema central dos seus filmes recentes, Rasoulof, um dramaturgo social, a dramatiza. Existem muitas similaridades entre as noções de drama de Rasoulof e do mais famoso Asghar Farhadi, a mesma tendência opressiva com tudo alimentando ao maquinário dramatúrgico. Como Não Há Mal Algum é formado por quatro histórias curtas sobre um grande tema (a pena de morte no Irã) tudo soa ainda mais fechado e em eco do que antes. O filme vai anulando sua força.  Se Rasoulof é um cineasta melhor que Farhadi é porque ele é capaz de lançar close sobre detalhes sociais que podem existir por si mesmos e garantir ao filme alguns momentos de respiro.  A despeito do Urso de Ouro de Berlim não se trata de um dos melhores filmes dele (imagino que o júri se atraiu pela importância do tema e a realizador), mas há alguns momentos de força mesmo que os contos percam a energia com o tempo.  

A Saída dos Trens (Adrian Cioflâncă, Radu Jude)
A Saida dos Trens da sequência ao trabalho de investigação histórica de Radu Jude (aqui em parceria com Adrian Cioflâncă). Ao longo de quase três horas acompanhamos os depoimentos dos familiares de vítimas de um massacre de judeus que aconteceu em 1941 na cidade romena de Iasi contra imagens de registro. A culpabilidade dos romenos e a amnesia histórica que permite ignora-la é um tema recorrente no cinema de Jude. A saída dos trens é contundente e muito bem organizado, um filme que faz valer a sua raiva. Ao contrário de um filme como Almas Mortas de Wang Bing, existe algo árido na abordagem dos realizadores, na certeza da força da documentação por si mesma, se ela é inegável, o mesmo vale para a sensação de que A Saida dos Trens existe sobretudo como um grande registro.

O Século XX (Matthew Rankin)
Um filme bem irregular cujo humor raras vezes funciona comigo e cujo pastiche parece mais uma ideia. Li muitas comparações do filme com o cinema de Guy Maddin e se é possível localiza-la, o resultado me parece bem mais próximo no que cabe a autores canadenses irritantes dos filmes do Matt Johnson. Se eu sou longe de um grande fã do Maddin há nos filmes deles alguns curtas dentro do longa de inventividade inegável enquanto as passagens similares do filme do Rankin me parecem mais com humorístico televisivo. Isto tudo dito, há um elemento de pesadelo aqui que garante ao filme seu interesse.

Sibéria (Abel Ferrara)
Como os outros filmes que Ferrara escreveu com o psquiatra Christ Zois, Sibéria é previsto numa subjetividade emersiva total e uma ideia de culpabilidade mesmo se seus personagens principais não tenham consciência dela. Move-se sempre neles após um pecado original (sempre alguma forma de abuso de poder) inseparável do filme. O poder físico de Sibéria faz com que ele se separe dos demais, o mundo aqui está ainda mais a beira de desaparecer, mas pesa tanto sobre os ombros de Dafoe. Algumas vezes, sobretudo no começo, o filme sugere um video game apocaliptico: tudo uma questão de se deslocar de um lado ao outro e tarefas físicas enquanto o filme diminui o ritmo para ” cut scenes de personagem”  que supostamente adicionam uma profundidade que a ação expressa melhor. O filme trabalha com muito dos mesmos temas que o anterior Tommaso, mas enquanto aquele filme lidava com assimilação burguesa, este vai fundo na abrasividade de “filme de arte” (e francamente ambas as opções são os dois lados da moeda do lugar de Ferrara como artista hoje). O filme se distancia de outros Ferraras recentes ao abraçar a ficção para melhor expressar seus demônios numa extensão que ele não faz a muito tempo. Eu não estou pronto para considerar Sibéria um Ferrara maior já que alguns dos momentos de choque e dualidades são um pouco fáceis, mas é de certo outro ponto alto dos últimos 15 anos da parceria entre Abel Ferrara e Willam Dafoe. Ainda mais do que em seus outros filmes juntos, Dafoe parece um verdadeiro co-autor, com o material sugerindo um meio termo entre seus interesses, e muito do trabalho físico aqui é previsto em Ferrara promovendo novos desafios para sua estrela e como ele reage a elas. Como uma jornada abrasive ao fim de si, o filme tem um forte poder acumulativo.

Verlust (Esmir Filho)
Esmir Filho resolve se arriscar no drama existencial dos poderosos em sua torre isolada. Como bom cineasta paulista não surpreende que Esmir Filho queira ter seu dia de Walter Hugo Khouri, se um Khouri nos seus termos bem distantes do drama do homem branco que notabilizou o mestre, mas preservando as mesmas angustias. Só que Esmir Filho longe de um cineasta da alma, é no máximo capaz de sugerir o simulacro da mesma. Produz um abismo falso, um vazio sem nada. Falta a Verlust sequer a convicção de permitir aos seus conflitos alguma consequência. Resta de curiosidade a presença de Marina Lima interpretando uma personagem bem próxima dela mesma, o que produz alguma tensão.   

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