Marighella não é propriamente um filme que existe por si só. Há muitas formas de olhar para ele e todas elas contaminadas por uma série de elementos extracampo. A começar pela própria figura de Carlos Marighella de tantas associações simbólicas e claro do arrastado processo de lançamento recheado de questões burocráticas que fizeram com que o filme do Wagner Moura chegasse aos cinemas brasileiros cerca de dois anos e meio depois do seu lançamento na competição do Festival de Berlim. Num extremo e no outro o filme acaba dominado por significantes quase todos apontando para uma ideia simbólica de resistência. Não deixa de ser curioso que no meio dessas projeções exista um filme que não parece se adequar muito a elas.
Como este é um filme histórico, me parece útil começar justamente pensando em Marighella numa tradição de cinema brasileiro. Nas últimas décadas a cinebiografia com fundo político é um dos gêneros mais recorrentes realizados por aqui, uma consequência dos nossos métodos de produção (quando a decisão de para onde vai o dinheiro é terceirizada para gerentes de marketing de grandes empresas, grandes temas e grandes homens soam sempre sedutores), mesmo que existam poucos sinais de que se trate de um gênero popular. É também um gênero eminentemente conservador que salvo poucas exceções tende a reproduzir consensos. Os óbvios pontos de comparação para Marighella são os muitos filmes do Sergio Rezende (sobretudo Lamarca) e o Batismo de Sangue do Helvécio Ratton no qual a execução de Carlos Marighella e sua perseguição pelo infame delegado Fleury consistem numa subtrama importante.
Comparado a estes filmes, Marighella é um modelo de eficácia. Não há nada da flacidez de Rezende, do tom narrativo tateante que os domina. O filme se circunscreve ao mesmo martírio do grande homem patriota que Lamarca, mas tem bem mais habilidade em costurá-lo. Moura tem o bom senso narrativo de focar a ação nos anos de clandestinidade pós-golpe de Marighella, o que o mantém mais compacto. O filme para pôr demais para discussões retóricas com colegas políticos e as cenas em família são da pobreza dramatúrgica habitual de cenas do gênero, mas há um delírio conspiratório animado pelo filme que lhe garantem algum interesse. Como desejo de transformar o martírio de Carlos Marighella num produto popular, o filme de Moura está certamente muito à frente da insipidez de Sérgio Rezende ou do amadorismo sensacionalista de Ratton. Li algumas reclamações que apontam um certo cinismo em transformar o filme numa espécie de filme policial com câmera nervosa e a despeito de um simplismo na descrição, é pelo menos uma opção clara por parte dos realizadores.
Observar que Marighella é um filme acima da média das cinebiografias políticas da retomada é por si só muito pouco. Sergio Rezende é um dos piores cineastas com longa filmografia do país; realizar um filme mais vigoroso que o dele é o mínimo. Marighella como filme é por demais incerto por todo o seu desejo de urgência, Moura não parece ter muita ideia do que fazer com seu personagem central. Ele permanece um símbolo numa narrativa mórbida rumo ao sacrifício. Uma parte surpreendentemente longa do filme é dedicada a polícia comandada por um Bruno Gagliasso autômato e implacável. São momentos burocráticos decalcados do imaginário do filme policial sem grande criatividade. O personagem de Gagliasso que comanda essas sequências é desprovido de qualquer personalidade para além de uma ideia de eficiência. O filme se engasga sempre que retorna para ele. O interesse ali se resume no reforçar de um certo masoquismo da esquerda brasileira que precisa idealizar a força e eficiência das forças opressoras. Sabemos que sobrava brutalidade e faltava inteligência aos porões da ditadura, mas esta constatação pouco serviria aos interesses simbólicos do filme.
As sequências entre os revolucionários tem aquela dureza típica dos filmes brasileiros sobre o tema, muitas frases de efeito e um profundo desconforto ideológico com os personagens. Moura como um bom ator parece querer construir um intimismo maior com seu elenco, mas os esforços nesta direção terminam interrompidos pela fragilidade do drama. A trajetória política e as posições de Carlos Marighella pouco interessam a este filme sobre ele. As discussões políticas que o filme ressalta são da ordem prática da resistência. Marighella está longe da cretinice de um O Que é Isso, Companheiro?, mas está bem mais para algo como Anos Rebeldes do que para um filme como Desesperato do Sérgio Bernardes para pegar um filme conterrâneo da ação que confrontava de forma direta repressão e luta armada. Filmes como Marighella reforçam a má consciência das posições mais centristas quando lidam com imaginar a resistência à ditadura, dada a quase invisibilidade de si mesmo, cabe fazer uma mitificação simbólica de uma esquerda radical cuidadosamente despolitizada.
A partir daí, cabe voltar para os extracampos que dominam os discursos sobre o filme. O que é Carlos Marighella para o filme que se propõe tratar da sua trajetória? Uma ideia de resistência diria a leitura mais simpática. Falei de martírio muitas vezes neste texto e ele me parece existir sobretudo como aquele que vai ser sacrificado. Tudo até o já muito discutido casting do Seu Jorge reforça esta ideia. Marighella merece um filme porque a ditadura militar o matou. Parece mais simples do que é. O valor de Marighella é menos da sua resistência mais do que dela resultou um cadáver. O filme se ocupa de imaginário bem específico pós abertura no qual o sangue de militantes de esquerda foi sacrificado para permitir nosso regresso lento, gradual e seguro aos meios democráticos. Expostos os excessos dos militares é possível chegar a Nova República. Daí Carlos Marighella ser uma figura carregada de peso simbólico, mas estranhamente esvaziada. Marighella e seus revolucionários são pedras essenciais na construção do consenso da Nova República, do repúdio completo à esquerda e à direita das duas décadas anteriores que reinou por aqui entre 1985 e 2016. Um consenso seguro e centrista, mas que depende deste sacrifício de esquerda radical. O filme tem algum mérito de tatear sobre ele, ainda que de forma tímida. Há uma morbidez considerável em cena, Marighella é um cabra marcado para morrer, o filme nos lembra constantemente, é uma história de fantasmas simbólicos. Se há algo que sustenta algum interesse para o filme é justamente esta sua contradição. É um projeto fora do tempo. Há um esforço muito grande, inclusive por parte dos produtores, de apresentá-lo como um grande “filme de resistência a Bolsonaro”, mas é notável o quão pouco o filme parece pertencer seja ao cenário de 2019 ou de 2021. Marighella é um filme de uma época em que Jair Bolsonaro era um deputado reacionário folclórico que vomitava merdas no Superpop. Ele poderia ser feito no governo FHC ou no governo Lula com poucas mudanças cosméticas. Ao contrário de um filme como Bacurau, que também foi concebido e filmado bem antes das eleições de 2018, sequer pode se dizer que se trate de um filme que observe certo estado das coisas em ebulição. É um filme velho novo. O que produz certo fascínio, ele é a representação de um status quo, mas como se é oposição e status quo ao mesmo tempo? O filme é um pouco este espaço improvável do discurso no Brasil de 2021, seus personagens são radicais, mas o que ele anseia é um retorno à ordem tal qual ela era concebida em 1994 ou 2010. Podemos ser generosos e dizer que seu olhar está um pouco mais à esquerda que os editorialistas do Jornal Nacional, mas no fundo ocupa o mesmo espaço estranho de establishment na oposição deste. Este é um status quo que incomoda profundamente partes do bolsonarismo empenhadas que são numa guerra simbólica que não quer permitir manter nada de pé das três décadas anteriores. O que o filme tem de menos radical acaba por ser o que no cenário de 2021 lhe empresta um caráter politicamente provocativo. Se o filme tem algum valor é de observar acidentalmente que o consenso da Nova República ruiu e não se sabe bem ao certo como se mover sem ele.