Leos Carax não faz muitos filmes, o que torna seu longa-metragem de retorno de cada década algo a se abraçar se você como eu calha de ter uma forte conexão emocional com eles (e os filmes de Carax são pensados com este efeito em mente). Seu filme novo Annette, agora disponível aqui no Basil pelo Mubi, chega uma década após Holy Motors, uma consagração crítica que ele nunca alcançará antes, é desta vez filmado em inglês, com duas estrelas de cinema (Adam Driver e Marion Cotillard) e apoio de uma das maiores corporações do mundo (Amazon). A grandeza da produção está na tela, claro que tal ambição não é estranha a Carax, Os Amantes do Pont Neuf foi à época a mais cara produção francesa até então feita e uma das razões que ele trabalha tão pouco é que para um cineasta dedicado para mundos tão privados e fora de moda seus filmes são consideravelmente caros. Ainda assim, mais do que na maioria dos seus filmes esta distância é bastante sentida em Annette. Pode-se dizer que Leos Carax é um dos maiores responsáveis de uma espécie de “superprodução amadora” e Annette com sua mistura de digital bem produzida e o jeito desajeitado e embaraçoso de Carax torna tal ideia ainda mais explícita. É afinal um filme sobre um bebê interpretado por uma marionete que age como se tais gestos loucos fossem bem simples para uma plateia comprar.
O cineasta que eu costumo aproximar mais de Carax é Philippe Garrel, cujo próprio trabalho é orgulhosamente amador apesar de seus orçamentos serem decisivamente mínimos. Eles são ambos cinéfilos inveterados pós nouvelle vague cuja obra por vezes sugere a gramática do filme mudo e dedicados à presença física dos seus atores principais. O que primeiro se guarda de seus filmes são rostos belamente iluminados e a impressão de estarmos diante de corpos exaustos. Seu trabalho é com frequência duro, mas há um forte componente musical para eles, Garrel é claro conhecido por suas sequências de danças em festas e Carax será sempre associado a imagem de Denis Lavant correndo ao som de Modern Love de David Bowie no seu primeiro grande sucesso Sangue Ruim. Em ambos os casos os esforços físicos são exuberantes, mas bastante desesperados. Eles são também artistas dedicados a amantes perdidos em si mesmos e as disputas de poder de casais. Garrel é um sobrevivente de Maio de 1968 que começou na cena underground das décadas de 60/70 cuja obra é dominada pela ideia de fracasso político, Carax foi também um artista revelado jovem, mas apareceu num momento em que a separação entre mainstream/underground era muito mais definida, a política é privada enquanto seu mundo segue desolador e paranoico. Por toda sua vitalidade e fama de enfant terrible, houve sempre algo bastante antigo sobre seu ponto de vista, enquanto os críticos mais apressados compararam seus primeiros filmes aos de Luc Besson, Carax interpretava em pequeno papel no Rei Lear de Godard e apareceu no documentário de Garrel Les ministères de l’art, sobre cineastas que se seguiram a nouvelle vague ao lado de nomes como Chantal Akerman, Jacques Doillon e Werner Schroeter.
O Carax jovem fazia contos de amor louco sobre a linha tênue entre paixão e narcisismo. O Carax mais envelhecido de Annette faz o mesmo, só que o que era antes louco é agora apenas amargo. Os sentimentos seguem intoxicantes e a ênfase de Carax na emoção sobre o realismo e como os personagens desaparecem numa dimensão física é consistente, mas o tom destrutivo tateante é colocado acima de tudo. Estes sentimentos em si não são novos, Os Amantes do Pont Neuf já era uma perversão do Luzes da Cidade de Chaplin no qual Carlitos prefere que a garota cega se torne uma extensão miserável dele do que arriscar-se a perdê-la. A ideia porém é apresentada de forma mais direta aqui. A euforia romântica assumiu uma chave reservada mesmo que o seu cinema em si não mude. Pode-se dizer que o Carax jovem fez filmes de um homem jovem apaixonado e desde a morte da sua parceira de longa data Katerina Golubeva em 2011, que é referida tanto em Holy Motors como Annette, ele passou a fazer filmes de viúvo que como Adrian Martin numa crítica muito boa que desenvolve em muito mais detalhe os elementos autobiográficos do filme “a culpa – racional ou não – que deve permanecer para o parceiro sobrevivente daquele que se suicida é um grande subtexto em Annette.”
Annette é um musical de rock originado pelos Sparks, uma dupla formada pelos irmãos Ron e Russell Mael. Eles desenvolveram o projeto antes de Carax se envolver e depois adaptaram às suas necessidades, a cartela dos créditos lê “música por Sparks, letras por Ron Mael, Russell Mael e LC”. Como os colaboradores principais de Carax cuja sensibilidade é visível por todo o filme, é útil falar um pouco sobre os Mael. Os irmãos tem uma afinidade clara com o cinema, ambos cursaram universidades de cinema no fim dos anos 60, seu trabalho conta com muitas referências cinematográficas e suas letras fazem uso de ideias visuais muito fortes. Seu desejo de realizar um filme musical é antigo, eles passaram boa parte dos anos 90 desenvolvendo um musical com Tim Burton, compuseram a trilha Sonora para Golpe Fulminante de Tsui Hark (eles anteriormente dedicaram uma canção a ele em Gratuitous Sax and Senseless Violins, de 1994, e tinham esperanças que Tsui dirigisse o musical antes do projeto ganhar tração em Hollywood) e mais tarde encenaram nos palcos um musical chamado A Sedução de Ingmar Bergman que já passou por vários estágios de desenvolvimento para os cinemas. Seu trabalho na música já passou por vários períodos e seu gosto por pastiche barroco permanece uma constante. Não seria um absurdo dizer que os Mael ocupam um espaço nos últimos 50 anos de pop/rock similar ao que Brian De Palma representa para o cinema popular americano: eles são bem conscientes sobre a história pregressa da música, existe muitas aspas no seu trabalho, um desejo de brincar no quintal dos outros, mas suas apropriações são muito exatas (por exemplo, quando eles buscaram Giorgio Moroder para produzir The Number One Song in Heaven em 1979 eles romperam com as barreiras das discotecas sem que ninguém falasse que tratava-se de uma banda de rock flertando com disco como quando os Rolling Stones o fizeram) e seus sentimentos permanecem surpreendentemente sinceros. Quando se ouve um disco dos Sparks impressiona-se com a precisão dos seu artesanato e permanece-se incerto sobre o quanto eles levam a sério a tudo, e esta tensão é por vezes o que há de mais marcante sobre eles.
A destreza dos Mael em encontrar emoções críveis de pontos de partida artificiais certamente é de grande apelo para Leos Carax. Ao mesmo tempo, o gosto pela ironia deles é um claro corpo estranho no seu trabalho. O amor de Carax por Chaplin é conhecido e existem muitos elementos de comédia física na sua longa parceria com o ator Denis Lavant. As performances dele em Holy Motors podiam ser bastante engraçados em toda a sua aflição, mas Annette [e o primeiro filme de Carax a ter uma boa quantidade de humor leve como as vinhetas satíricas de fofoca televisiva que ajudam a dar contexto a ação e os números com médicos e a polícia (por regra se alguém que não seja um dos quatro personagens centrais começar a cantar em Annette [e geralmente bem engraçado). Isto é bem distante dos primeiros longas de Carax, quando ele adaptou Pierre e as Ambiguidades de Herman Melville em Pola X em 1999, ele admitiu cortar o humor satírico do autor porque não sabia como lidar com ele. A mesma ironia faz de boa parte de Annette bastante deliberado, desde sua estreia em Cannes, críticos vem pisando em ovos sobre o destino de Cotillard já que é impossível escrever a sério sobre o filme sem lidar com ele, então quando finalmente assisti a Annette, foi divertido notar como a maneira como críticos sugerem sem falar abertamente é similar à como a ênfase pesada em como o trabalho dela como cantora soprano que sempre morre tragicamente para a sua plateia deixa transparente para qualquer espectador a trajetória do filme. Dito isso, pode-se especular se a falta de intimidade de Carax com a comédia verbal pode explicar por que a performance de standup de Driver é muito sem graça, apesar de que eu diria que ela funciona como uma sátira muito hábil de como a comédia standup mainstream se transformou em uma forma de arte performática em que comédia é secundária. Carax frequentemente corta para a plateia do Henry de Driver, e se isto reforça sua trajetória de declínio, também ajuda a estabelecer como toda a ideia de Annette de expressão artística leva a recepção bastante em conta. O que me parece bastante engraçado sobre a performance de Henry é observar como a plateia é movida ou por um desejo masoquista de ser insultado ou porque sua persona violenta de “macaco de Deus” fala diretamente a eles.
Como Annette é um musical quase todo cantado de um autor francês, o primeiro impulso é certamente de pensar nos musicais de Jacques Demy/Michel Legrand, e apesar destes terem sua dose de desolação e ocasional assassinato, o efeito geral de Annette permanece bem distante dele. Uma das grandes contribuições dos Mael para o filme é de estrutura, como artistas de gravação primeiro e dramaturgos depois, eles organizam o filme como um álbum, uma série de números individuais em que personagens estão sempre se declarando em canção, uma série de monólogos no lugar de duetos que se encaixam com as tateantes mais fracassadas tentativas de conexão ao longo do filme. É interessante como em certo ponto do filme o maestro de Simon Helberg revela que o dueto romântico entre Driver e Cottllard foi na verdade composta por ele para Ann, porque quando primeiro introduzido apesar de Cottilard cantar partes dele, a performance dominante de Driver a transforma “Nós nos amamos tanto” em algo muito mais próximo de “Eu te amo tanto” com toda ênfase colocada na performance de um homem que se posiciona como apaixonado. De fato, apenas no número final entre Henry e Annette algo que se aproxima de um dueto verdadeiro toma forma, com personagens comunicando emoções conflitantes um ao outro. Pai e filha estão em completo desacordo, mas eles cantam juntos.
O filme se abre e encerra com cenas que reforçam sua posição como um show como musicais frequentemente fazem, mas eu me surpreendi com como ele segue retornando a esta ideia, não só com muito material sobre performance, mas por de forma consistente reforçar que há um “nós” o assistindo, que se trata de uma ópera cujas emoções confusas movem-se constantemente entre uma expressão íntima e pessoal é algo que está lá para ser exibido e consumido por uma plateia. Nisso, eu também suspeito que exista uma distância entre as noções de Carax e dos Mael de performance, ambos são enamorados por artifício e espetáculo como forma de expressão pessoal, mas com ideias diferentes do que fazer um show significa. O processo de criar um espetáculo é muito central aos conceitos do filme como o de assistir a um. Porque Henry convida o maestro para acompanhá-lo na turnê de Annette? O filme o precisa ali para dramatizar os impulsos mais violentos de Henry, mas isto se desdobra nas próprias necessidades de Henry de ter um rosto familiar à sua volta, sua nova persona de pai de artista precisa disso tanto quanto sua antiga de comediante provocador. Na mesma chave, Carax encena a primeira cena entre Henry e Ann no filme como ele fazendo um grande gesto deste encontro para todas a sua volta e muito das suas cenas íntimas tem tom similar. O próprio dom de Annette é tratado como algo que precisa ser compartilhado mesmo contra a ideia de exploração. O filme termina com Henry pedindo ao público para parar de assisti-lo como uma elaboração da decisão de Annette de parar de cantar, uma estratégia retórica que poderia facilmente soar presunçosa, mas que funciona graças ao peso físico que Driver e Carax dão ao momento.
O filme começa prometendo romance. A grande promessa dos musicais de cinema com uma dose extra de danação já que o filme é rápido em estabelecer o perigo em Driver. Ise é uma história de amor, é sobretudo sobre as dificuldades de um cara de estendê-lo aos outros. Ann e Annette são ambos muito diferentes objetos de cena para a performance romântica de Henry. Cottillard sofre bastante por consequência disso, o filme se expressa por completo nas cenas entre Driver e o bebê é nas cenas dela as digitais da preposição de Carax/Sparks são fáceis de notar. Ann é uma passagem que permite a Henry expressar seu comportamento destrutivo. Mesmo em vida, Ann permanece um fantasma etéreo no que de resto é um filme muito físico. A presença de Cottilard é como o oposto da bebê Annette o que imagino é intencional. Ela está bem, mas de uma maneira recessiva que contrasta bastante com atuações em outros filmes de Carax. Pode-se dizer que num filme sobre narcisismo tóxico, há algo no gesto de uma estrela de cinema que se dispõe a ser ofuscada pelo bem do seu filme.
Annette segue a mesma lógica de outros filmes de Carax de fazer com que sua construção bastante artificial seja ancorada por uma atuação muito física. Driver está mais próximo de Guillaume Depardieu, pouco visto Pola X do que do mais exuberante Denis Lavant nos outros longas de Carax, grosso e animalesco, mas reservado o que em ambos os casos se encaixam com os filmes. De certo não funcionaria sem ele. Pola X lida com uma grande quantidade de repressão aristocrática liberada por desejo incestuoso, enquanto Annette tem uma forma aberta e agressiva de ser confrontada com a existência da filha. Os planos de Henry na motocicleta sugerem uma alusão bastante direta ao filme anterior. Annette por vezes parece parar para observar a maneira carregada com que Henry se move. A maneira como o filme se move entre sua presença bruta e toda a emoção grandiosa que Carax pinta ao seu entorno permanece consistentemente poderosa. E há algo a se dizer por como o filme em Driver move-se entre cenas nas quais Henry reconhece que está no palco e as cenas em que ele se entrega a performance privada, eles se iluminam mas funcionam de forma diferente. Driver divide a cena com quatro performances bastante diferentes, a presença etérea de Cotillard, a persona pesada, mas bastante artificial da filha, e Simon Helberg que sublinha cada possível dúvida, seu personagem desaparecendo na neurose no lugar do narcisismo.
Existe muito pouca alegria aqui para fora dos números de abertura e encerramento, mesmo as sequências românticas são consumidas pela auto absorção das personagens, mas o nascimento de bebê Annette é uma distração adorável no meio disso. O filme até certo ponto depende de como se reage ao bebê marionete. Carax é um cineasta bastante físico, mas também um anti-naturalista. Annette é um filme cheio de prazeres bastante cinematográficos, ao mesmo tempo que que opera em direção ao colocá-las num contexto afiado. Nenhum mais do que a marionete. De certa maneira é uma ideia clara, porque Henry não consegue ver a filha como pessoa, ela só é interpretada por uma jovem atriz quando ele consegue reconhecê-la, mas Carax a transforma no centro emocional do filme, tudo vem da marionete, todos projetam sobre ela, a marionete está sempre carregando um macaco de pelúcia para representar seu pai, e a grande briga de Henry com o maestro é introduzida com a visão do macaco sendo substituído por um piano em miniatura. Tudo é imbuído de vida enquanto o filme nos ajuda a se adaptar aos estados emocionais de uma ficção que se constrói a partir de uma marionete. Para se levar por Annette é preciso abraçar esta ideia de como emoções são projetadas sobre tudo em cena. Henry é um mau pai como é um mau marido, mas Annette é um filme de pai, ele começa com o próprio Carax dividindo a cena com sua filha Nastya e termina com uma dedicatória a ela. O momento final em que pai e filha podem finalmente atuar sem barreiras artificiais teatrais (com Devyn McDowell substituindo a marionete) tem um poder liberador poucos momentos em filmes recentes atingiram, ainda há muito artifício em torno deles (incluindo fazer Driver se aparentar supostamente como seu diretor), seus apelos mútuos recebem tanto espaço por Carax para limitar a construção deliberada dos Sparks, uma construção genuína de verdade emocional é alcançada mesmo que para crédito do filme uma conciliação já não é bem possível.