
No Teto da Baleia, de Raul Ruiz
No Teto da Baleia (Raul Ruiz,1982)
Comedia antropológica de encontros e desencontros culturais. A base é uma sátira ao estudo científico. O antropólogo europeu vai a Patagônia estudar indios perdidos de uma tribo, mas na câmera de Ruiz o europeu é igualmente estudado. Não é acidente que a ligação ocorra através de um aristocrata comunista. O deslocamento cultural é geral, algo reforçado pelo uso das mais múltiplas línguas. Ruiz vai recortando o olhar europeu, estilhaçando o filme pelos mais diversos olhares possíveis. No Teto da Baleia é um filme da mais completa liberdade, no qual o credo central é de que tudo é possível. Não haverá ação ou escolha de quadro e luz que não faça sentido no olhar do filme. Acrescenta-se novos causos, novos referenciais, a câmera de Ruiz segue encontrando novas imagens. Borges é invocado, Calvino comparece (traduzido para o inglês para melhor caber na babel do filme). Passo a passo, Ruiz nos leva a desrazão. Um filme essencialmente latino contrabandeado para a Europa. Terrorismo anti-colonial.
A Rosa Azul de Novalis (Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, 2019)
A princípio A Rosa Azul de Novalis sugere uma extensão do projeto de Gustavo Vinagre com Lembro Mais dos Corvos. Outro encontro intimo com outra figura marginal, outro forjar de intimidade e performance. O olhar aqui é um pouco mais duro, ocasionalmente Vinagre e seu co-diretor Carneiro até ameaçam tirar seu personagem Marcelo Diorio da zona de conforto sobretudo quando sugere entrar pela porta do privilégio social, mas o filme logo se recolhe. Existe algo de interesse na teatralidade da performance de Marcelo que se desfaz em muitas decisões frágeis de encenação. Não há nesse cinema muito espaço para o desconforto, ao menos não das plateias que possam encontrá-lo. O espectador ideal de A Rosa Azul de Novalis é a avó de Marcelo que temia que ele seria um gay clichê. Quando Marcelo invoca Georges Bataille, é difícil não pensar o quanto distante estamos do autor francês. Trata-se de um filme sobre o cu como peça política, mas é um cu divorciado do desejo, reduzido a um fetiche de mercadoria, um cu apaziguado.
Enquanto Estamos Aqui (Clarissa Campolina e Luiz Pretti, 2019)
Enquanto Estamos Aqui é um filme bem aberto sobre suas influências Chantal Akerman, Jem Cohen, muito da tradição do filme diário. Uma história de amir passageira que se desdobra num ensaio. O desejo de fabulação do filme é forte e garante sempre o interesse, mesmo que a narração em terceira pessoa possa as vezes se esforçar demais para estabelecer uma melancolia do possível (um problema mais literário do que cinematográfico, a imagens de Pretti e Campolina não abandonam uma qualidade passageira). O filme é mais forte quando se assume epistolário pois a multiplicidades de olhares é parte da sua força. Estamos num território afetuoso conhecido de quem acompanha os realizadores, mas Enquanto Estamos Aqui encontra sua força quando mergulha seu desejo romântico interrompido na incerteza. A sequência no Brasil (a maioria do filme se passa em Nova York) é especialmente doida. Aos poucos os realizadores encontram um retrato muito perspicaz do abismo brasileiro, aquele casal momentâneo tomado pela nossa incerteza. A fragilidade da ficção tênue, o desejo de afirma-la encontra uma transcrição forte do temor de uma realidade turva.