
A Portuguesa, de Rita Azevedo Gomes
A Portuguesa (Rita Azevedo Gomes, 2018)
O filme de Rita Azevedo Gomes recebeu comparações com Oliveira e Straub/Huillet que me parecem pouco uteis, pois é sobretudo um filme de Rita Azevedo Gomes, mesmo que uma certa dramaturgia lusitana ou uma ou outra composição levem esses nomes a mente, os usos deles são muito particulares. Primeiro me impressiona um jogo entre a secura das paisagens e o cuidado da cor da fotografia e cenografia. Um embate que antecipa no plano vários outros embate dramatúrgicos do filme. Entre homem/mulher, guerra/paz ação/passagem do tempo, tradição/revolta. Tudo muito pontuado por certas fugas, lá em figuras menores como a participação de Ingrid Caven, em certas ações inesperadas, na presença constante de animais que cercam a portuguesa do título. Ela é a estrangeira na região entre Itália e Áustria, recém-casada com algum nobre que pouco preocupado com ela e muito com a fazer guerra. Uma guerra de 11 anos, interminável. A paz não parece combinar muito com os homens aqui, só os revela tolos e inúteis, loucos para provar a sua virilidade. A guerra constante de Musil, é tomada nesse filme pelo fatalismo português. Briga-se o tempo todo com o sentimento de derrota. Clara Riedenstein está ali figura deslocada, na terra estrangeira que só lhe enxerga o exotismo, só lhe teme o estranhamento, ao qual se luta contra o tempo todo. É um achado aquele castelo em ruina, pela metade, pura decadência, afirmação e fim de uma ideia de aristocracia. A Portuguesa é um filme de deslocamentos complexos entre Portugal e uma Europa profunda. Nisso se há algo que lembra Oliveira é a colaboração de Rita Azevedo Gomes com a grande Augustina Bessa-Luis, a quem a sessão de hoje foi dedicada, a escritora servindo como intermediária entre Rita e Musil, como antes servira entre Manoel e Flaubert em O Vale Abrãao. A Portuguesa é sobretudo um filme de uma dramaturgia muito precisa e com achados notáveis de encenação. Fico aqui com um plano marcante: os soldados chegando nos cadáveres de um pós-batalha estendidos no chão, todo o espólio da guerra num filme que é ao mesmo tempo muito violento, mas tomado pela não-ação.
A Hipótese do Quadro Roubado (Raul Ruiz, 1978)
A Hipótese do Quadro Roubado é um dos filmes mais prazerosos de Ruiz. Investigação ao mesmo tempo séria e algo ridícula. Aquele humor safado de quem está sacaneando o formato documental e a pompa dos especialistas (é F For Fake se a piada fosse mais obscura). Aquele diálogo constante entre o colecionador em cena e o off do narrador, ambos tomados pela certeza quando a única certeza do próprio filme é que os labirintos conspiratórios da ficção que ele encontra nos tais quadros são fascinantes. É um filme obre pintura rodado em preto e branco, nada poderia ser mais perverso. Um deslumbre.
Não Pense que Eu vou Gritar (Frank Beauvais, 2019)
Difícil para mim escrever sobre esse filme pois me pega de uma maneira bem pessoal. Vamos dizer que rolou uma identificação muito forte com o diretor-narrador. Largado pelo namorado, ele passa o ano a ver filmes baixados da internet, administrando a ansiedade, as preocupações com o mundo, dinheiro, futuro, família. O texto em off de Beauvois segue a tradição do filme ensaio confessional francês, as imagens combinam trechos de cerca de 400 filmes que ele assistiu no período, numa montagem que faz um trabalho muito interessante de abstrair os filmes (há uma lista no final, mas se há algo que Não Pense que eu vou Gritar seja é um filme de reconhecer os clipes), ao mesmo tempo que ocasionalmente tropeça no ilustrativo.