
A Noite Amarela, de Ramon Porto Mota
Algo que separa o Olhar de Cinema de outros festivais similares que temos por aqui é a maneira como todas as sessões são introduzidas por um dos curadores. Aproxima o espectador dos filmes e cria uma intimidade com o festival incomum em eventos desse tamanho. Acho justo destacar.
Fragmentos do Exílio (Silvio Tendler, 2003)
Tendler reorganiza trechos de seus filmes de exilio perdidos. Talvez os originais tivessem real interesse, na altura de 2003 não sobra muito mais de Tendler do que se perder no próprio egocentrismo. Grotesco, mas felizmente são só alguns minutos.
Diálogos de Exilados (Raul Ruiz, 1975)
Ruiz filmando o cotidiano dos exilados chilenos no primeiro momento pós golpe em tom absurdista. Filme de um cuidado com linguagem e descrição dos hábitos notáveis. Muito amargo, mas engraçadíssimo. Na suspensão completa da normalidade, todo mundo tomado pelas fobias e paranoia e tentando se agarrar as próprias certezas e rituais. Só posso imaginar o escândalo que este film causou na esquerda chilena da época. Sob a lupa do Ruiz, ninguém é normal, e se há heroísmo é o de tentar seguir adiante. Com o passar do tempo se tornou um documento essencial de um mundo fora de lugar.
Conhecendo o Grande e Vasto Mundo (Kira Muratova, 1980)
Um dos títulos mais belos do cinema para um filme idem. Já conhecia o filma da Muratova, mas um prazer ver no cinema dentro da homenagem que o festival prestou a ela (boa parte da seção de clássicos este ano é dedicada a cineastas que partiram nos últimos doze meses). Filme de aventura e abertura, de individualidades e coletivos e do desejo de se forma sua própria utopia.
Dyketactics (Barbara Hammer, 1974)
Força Dupla (Barbara Hammer, 1978)
Latifúndio (Érica Sarmet, 2017)
Boca da Loba (Barbara Cabeça, 2017)
X-Manas (Clarissa Ribeiro, 2017)
Vever (para Barbara) (Deborah Stratman, 2018)
Curtas que formaram a potente sessão em homenagem a Barbara Hammer. No lugar de um programa de curtas dela, o festival bolou um programa que aproxima elas de algumas realizadoras brasileiras recentes e fechando com o último curta de Stratman a partir de material antigo de Hammer. Sai-se assim de uma homenagem bonita, mas encerrada em si mesma para algo mais pulsante que inclusive faz jus a ideia dela como realizadora revolucionaria em constante movimento. Estou longe de ser um especialista na cineasta (vi alguns curtas dos anos 70 e o longa Resisting Paradise, de 2003), mas a sessão me parece articular muito bem este movimento começando com a declaração de princípios Dyketactics e seguindo com Força Dupla que de certa forma pega muitas das ideias sobre corpo e desejo do primeiro filme dão para elas uma face mais humana e alongada e Hammer tem um trabalho muito bom de emprestar uma ternura para imagens e sentimentos ao qual o cinema com frequência trata com um olhar bruto. Os três curtas nacionais foram exibidos numa ordem muito funcionam no qual confronto e exposição de ideias sobre sexualidades, corpos e resistência de Latifúndio vai a cada um dos curtas seguintes sendo tomado por um desejo crescente de fabulação, a busca por uma ficção que de conta de novas corpos e sentimentos de X-Manas (Boca da Loba, de certa forma me parece no meio do caminho e por isso mesmo mais incerto, por mais que sempre bem interessante). X-Manas em especial foi uma bela descoberta com o cyberpunk se transmutando em queerpunk como um letreiro aponta. Em todos eles, a presença constante de pensar o desejo como maneira de fugir da lógica desgastada do capital. O curta de Stratman que aproxima Hammer de Maya Deren (e com isso produz via texto, imagem e montagem, o encontro de três gerações de cineastas experimentais americanas vitais). O engajamento de Stratman desloca o cinema de Hammer em outras direções e completa o processo da sessão. No debate depois da sessão (que infelizmente só vi até a abertura para perguntas), a Carol Almeida, que foi uma das organizadoras da sessão, disse que uma das intenções era despertar no espectador de conhecer mais a obra da cineasta isso ele faz muito bem.
A Noite Amarela (Ramon Porto Mota, 2019)
Como se um filme de jovens de Richard Linklater fosse amaldiçoado por deuses lovercraftianos. Como em todos os filmes do Ramon Porto Mota estamos no terreno do cinema fantástico, mas o horror aqui é de caráter mais abstrato e existencial, um grande mal-estar que traga a todos. Há uma espécie de monstro na Ilha a devorar o grupo de jovens, mas ele permanece muito mais um sentimento que vem do fora da imagem. Um slasher sem gore no qual a violência é produzida por câmera e som. Há algo do Pulse do Kiyoshi Kurosawa, mas a solidão é substituída pela incerteza. Que merda estar saindo da escola e entrando na idade adulta no Brasil de 2019 (o filme nem de longe pesa a mão nisso, mas é impossível ao espectador não pensar que Cthulhu é o Brasil). Se há algo de universal neste filme tão paraibano é este temor o fim da adolescência. E nisso é bom dizer que por toda abstração do seu horror atmosférico ele é de um cuidado na descrição daquele grupo de amigos que lhe ancora. É um filme de terror, mas é sobretudo um filme de adolescente, de fim de adolescência (e afinal, o terror adolescente por vezes é um filme de fim de adolescência no qual o gozo se transmuta em morte). O bloco passado em Campina Grande é um achado da forma como o filme articula essa viagem em flashback a maneira detalhada e terrível com que ele delineia o universo daqueles jovens. Não há ali os elementos do gênero que dominam o resto do filme, mas por isso mesmo é tudo ainda mais terrível. No debate pós sessão o cineasta disse que a sua referência maior foram os filmes de horror do Walter Hugo Khouri, mas o filme me fez pensar na tradição do filme de casa de praia brasileiro que ele tão bem resgata e dentro dele sua porção maldita e sobrenatural (A Força dos Sentidos, Excitação, Ninfas Diabólicas, todos filmes de khourianos é bem verdade). Está ali aquele espaço ao mesmo tempo forte e decadente, muito bem esquadrinhado ao longo dos planos. Vale notar ai que é o raro filme de praia que busca perversamente recusar o sol. A praia com muita frequência é esse espaço de transcendência e conciliação, mas no cinema brasileiro ele também tem uma tradição de ser o de desgaste, do fim das coisas. Aqui é uma fresta no chão pronto para todos tragar.