
Memórias de um Estrangulador de Loiras, de Julio Bressane
Memorias de um Estrangulador de Loiras (Júlio Bressane, 1971)
Não via Memórias de um Estrangulador de Loiras desde a retrospectiva paulistana do Bressane em 2004 e é um prazer revisita-lo. Filme melancólico, mas muito confrontador. Rodado no exilio em Londres em 1971. Sempre o comparo com o disco que Caetano gravou em Londres na mesma época, mas a melancolia do Caetano é triste e a de Bressane violenta. Mas em ambos existe um misto de envolvimento e repulsa pela Europa. Hoje me caiu a ficha que Memorias de um Estrangulador é História da Minha Vida de Casanova revisto antropofagicamente com o mal-estar dos trópicos invadindo a civilização europeia. O filme quase todo ali naqueles parques londrinos, aqueles espaços externos de uma calmaria outonal. Antes de tudo, é um grande veículo para Guara Rodrigues que sempre foi uma das maiores presenças do cinema brasileiro e aqui faz só isso, existe plano após plano. E também uma aula de encenação, a mesma ação (Guará a estrangular as tais loiras) repetida mais de vinte vezes e sempre encontrando novas formas. Tem inclusive um dos grandes momentos do humor negro quando Bressane coloca as três loiras em bancos em perspectiva e a plateia já ri enquanto vê o Guara entra pelo fundo do quadro e segue estrangulando uma a uma até chegar na frente do plano e a selvageria se irromper pela terceira e última vez e a graça fica seca, amarga como o filme.
As Divisões da Natureza (Raul Ruiz, 1978)
Muito interessante a opção do festival de exibir este curta de meia hora do Ruiz junto ao loga do Bressane. É um ensaio sobre o estado de um castelo francês do século XVI. O que poderia ser uma encomenda de divulgação vira nas mãos de Ruiz tanto pelo off e ênfases, mas também pelos seus jogos de perspectiva com a câmera num estudo sobre espaço que fragmenta o castelo em todas as direções. Não deixa de ser assim como o Estrangulador uma espécie de invasão barbará sobre a placidez europeia.
A Vocação Suspensa (Raul Ruiz, 1978)
A Vocação Suspensa começa com imagens que localiza Ruiz na França como um artista exilado. O próprio filme, longas variações sobre discussões teológicas, se move entre dois tempos, dois registros, a aproximação sensual da arte e a fé religiosa. Vendo o filme pensei comigo mesmo este deve ser o mais latino entre os filmes de exilio de Ruiz e depois da sessão leio uma entrevista no qual ele explicava que um dos princípios do filme era a sua percepção de que havia poucas diferenças entre as discussões entre os dissidentes políticos que ele conhecia e os teólogos porque afinal de contas todo o comunista latino fora criado como católico. O filme é meio que uma jocosa constatação desta impossibilidade de se livrar das origens e da certeza de que todo a paranoia surge de uma crença profunda.
Casa (Leticia Simões, 2019)
Três gerações de mulheres negras de Salvador, uma história pessoalíssima, mas também uma história de país que se move com força nesse inscrever do geral nos momentos mais íntimos. Um tanto incerto as vezes, desequilibrado no peso que a relação mal resolvida mãe/avô acrescenta o filme, especialmente quando consideramos que o movimento dramatúrgico dele é rumo a conciliação. A mãe é uma grande personagem de cinema, é fácil perceber porque a diretora Simões reconheceu nas visitas a casa uma possibilidade de filme. Há aqui mais força e ressonância que em outros filmes memorialistas brasileiros recentes. Muito porque a figura da mãe não permite que ele se apazigue por demais na memória e do reconhecimento de Simões de conceder este espaço a ela na maior parte do tempo.