
The Waldheim Waltz
Mais um post sobre filmes da semana, mais mal-humorado do que de costume, no próximo prometo que volto a programação normal.
O Destino Bate a sua Porta (Bob Rafelson, 1981)
Acho que o livro do Cain é um dos pulps mais filmados da história, costuma-se destacar a versão do Visconti, Obsessão (1943), e a da MGM (1946), dirigida pelo Tay Garnett, mas sou bem parcial a que Pierre Chenal rodou na França em 1939, Le Dernier Tornant, porque Cain foi feito para o fatalismo francês e o filme é uma das melhores expressões do mesmo (a versão Fassbinderiana do Petzold, Jericó, é boa também). Essa grande produção dirigida pelo Rafelson é a mais caída. Lembrava-me de um filme melhor, talvez porque na adolescência a carga erótica que é a única contribuição real do Rafelson se destacasse mais. Gosto muito do Rafelson, mas as suas tentativas de neonoir são na média bem menos interessantes do que os seus mais excêntricos estudos de personagem. Tudo aqui é errado, a atmosfera carregada com tanto academicismo é um desastre, aquele bar é mais pé sujo limpo de estúdio do que o do Garnett e ele tinha que lidar com censores e o lustre da MGM. Nada é crível, pulp sem pulp. Sobra a Jessica Lange que tenta como pode deixar alguma verdade ali.
Os Fantasmas de Ismael (Arnaud Desplechin, 2017)
Desplechin autor de meia idade em crise, este é seu segundo filme de crise seguido que se desdobra como uma sequência que ninguém pediu de um dos seus filmes mais famosos (Reis e Rainha aqui). Desta vez o cineasta vivido por Mathieu Amalric não só sofre de bloqueio criativo, como recebe a visita da primeira esposa vinte anos após sua morte. Três Lembranças da Minha Juventude me pegou de surpresa pela sua leveza e pela auto interrogação que cortava o tom de lamento onanista um pouco. Menos sorte neste Os Fantasmas de Ismael que passa a limpo os anos 2000 do cineasta como o filme anterior fazia com os 1990, se naquele retomava-se um pouco do viço da juventude (em parte reflexo dos jovens atores), aqui só afirma-se o eu. É mais do mesmo muito consciente, um daqueles álbuns tardios em que um artista decide entregar aos seus fãs o que eles querem. Bagunçado e irritante na mesma medida que generoso e expansivo. Um terço das ideias dão bem errado, mas as cenas boas são uma maravilha ao menos para este fã de longa data. O filme é um abismo afirmativo, sempre confortável, pensado em algum duplex parisiense imagino. Como sempre em Desplechin, os atores seguram muito as pontas, sobretudo Marion Cotillard e Charlotte Gainsbourg.
Human Flow (Ai Weiwei, 2017)
Todo o Dinheiro do Mundo (Ridley Scott, 2017)
Dois filmes bem complementares, o bom e o mau capitalista. Ambos fascinados com status e prestigio e a suas maneiras retratos reveladores dos seus realizadores. No caso do filme do Weiwei, um desastre grotesco de narcisismo, a crise de refugiados é uma extensão da generosidade do artista, ênfase sempre nele e sua benevolência que fique claro. Não nego o valor do trabalho assistencialista do artista chinês, mas a representação que ele faz dele é um horror. Cabe aos refugiados, o papel de objetos de cena. Não surpreende que a sua principal estratégia visual sejam aqueles planos aéreos nos quais os refugiados viram pequenas formigas achatadas. É como se o objetivo de Weiwei fosse revelar o lado benevolente do colonialismo. Todo o Dinheiro do Mundo não é ofensivo da mesma maneira, pois é um filme honesto. Aqui todo o brilhareco com o qual Scott está habituado existe menos em função do thriller sententista que o filme promete, mas em mostrar um maravilhamento com o poder. Se Human Flow é a pornografia da pobreza, Todo o Dinheiro do Mundo como seu título anuncia é a pornografia da riqueza. J. Paulç Getty é o vilão do filme, mas o filme existe em completa submissão ao seu poder.
Lembro Mais dos Corvos (Gustavo Vinagre, 2018)
Cinema é poder e nada mais difícil do que achar o ponto certo entre cineasta e personagem, sobretudo em filmes retrato como este Lembro Mais dos Corvos. Se Human Flow literalmente achatava suas personagens, Lembro Mais dos Corvos achata o cinema. Julia Katherine tem vivacidade e presença de câmera de sobras, se Lembro Mais dos Corvos tem alguns momentos de graça é por ela, enquanto o filme que ela estrela permanece sempre morno. O filme lembra em procedimentos muito Retrato de Jason, da Shirley Clarke, no qual a cineasta americana expunha Jason Holliday, negro, gay, performer de cabaret, vagabundo da noite, ao longo de uma madrugada de álcool, drogas, pura nudez emocional, como retrato sobre ser gay e negro nos EUa dos anos 60 não há nada igual como registro de uma performance idem, ao mesmo tempo o trabalho de Clarke é de uma violência ímpar. Acho que ninguém sai daquele filme querendo tomar uma cerveja com a realizadora, se lançasse o filme hoje seria xingada, mesmo á época deixou muitos espectadores indignados. Não se dirá o mesmo sobre Lembro Mais dos Corvos, um filme com grande orgulho do próprio um bom mocismo, daqueles que todo mundo pode dar sossegado um tapinha nas costas do cineasta boa gente. A arte esvaziada de qualquer violência e/ou incomodo. Há uma presença a procura de um filme disposto a se sujar um pouco. A grande ironia é que se Clarke incomoda por como vampiriza Holliday, Vinagre não faz muito melhor com Julia Katherine, seu filme só é menos honesto no seu processo de exploração. Esta medida certa do poder do realizador, da violência do retrato, é uma que Lembro Mais dos Corpos nunca parece encontrar.
The Waldheim Waltz (Ruth Beckermann, 2018)
Kurt Waldheim foi secretário geral da ONU por cerca de dez anos e em 1986 era candidato a presidência da Áustria quando foi revelado que ao contrário do que afirmava sua participação no exército alemão na segunda guerra o colocava em contato direto com deportações de judeus gregos e massacres na futura Iugoslávia. Ainda assim Waldheim manteve sua campanha e foi eleito. Sim, também se elegia nazistas nos anos 80. O filme de Ruth Beckermann recupera a campanha contra Waldheim. É um filme muito especifico sobre as ilusões austríacas e suas relações muito mais próximas do que desejaria com nazismo, mas é também um filme que visto hoje é sobre uma amnesia histórica geral. Kurt Waldheim é o nazista deles, mas ele é também todas as mentiras que a sociedade ocidental conta para si mesma para diminuir nossa cumplicidade com o barbarismo. Vendo o filme pensei muito no Brasil, no nosso extermínio indígena (ainda em pleno andamento), com nossa herança escravocrata (idem), com nosso papel na Guerra do Paraguai, no Estado Novo, no regime militar, na nossa mentalidade conciliadora e todos os desastres que ela varre para debaixo do plano. O trabalho de Beckermann é notável em toda minucia da sua construção, seja sobre os protestos, seja sobre a figura de Waldheim, toda a informação que ela levanta tem uma força para além delas mesmas, olha com a mesma clareza para o passado e o futuro. Um dos filmes essenciais de 2018.