(English version here)
Paul Newman foi uma estrela de cinema por cinco décadas, ele foi também um grande diretor por um par delas. Algo que não é mencionado muito nos dias de hoje, provavelmente porque os filmes de Newman não circulam tanto quanto podiam (um desses selos de lixo como Criterion bem que poderia lançar uma coleção com esses longas para colocar este processo de redescoberta em movimento, são só seis filmes afinal). Não é como se a carreira de diretor de Newman recebera nenhuma atenção à época, seu filme de estreia Raquel, Raquel (1968) foi indicado ao Oscar, seu último, uma adaptação de The Glass Menagerie (1987) que é provável a melhor filmagem de Tennessee Williams para cinema, esteve na competição de Cannes. A primeira vez que tomei consciência de Newman como diretor foi ao ler uma entrevista de 1977 de Serge Daney, quando perguntado sobre o cinema americano que interessava a Cahiers du Cinema à época seu então editor respondeu com uma pequena lista “Robert Kramer, John Cassavetes, Paul Newman, Stephen Dwoskin, Monte Hellman”. É uma lista de peso e uma que sugere um ponto de entrada bem distante de Hollywood para seu trabalho.
Os seis longas-metragens de Newman são todos adaptações (três romances, três peças). Quatro deles tem sua esposa Joanne Woodward ao centro e um par deles são protagonizadas por ele mesmo (Woodward tem um papel coadjuvante em Harry & Son de 1984 também). Eles todos lidam com personagens em situações de poucas saídas geralmente em meios da classe trabalhadora. Existe quase sempre um relógio batendo ponto, literal ou metafórico. Seu melhor filme A Caixa de Surpresas segue três pacientes com câncer contando seus últimos dias e recebendo a visita de familiares. Para uma das grandes estrelas do seu tempo, os trabalhos de direção de Newman apresentam poucos sinais de narcisismo, no máximo ele fez questão de se dirigir em seu primeiro papel como um homem velho em Harry & Son que bem conscientemente assume seu lugar de um ponto divisor na sua carreira.
A habitual desconsiderada no trabalho de Newman define ele como um diretor teatral com pouco interesse para além das atuações. É de uma preguiça enorme para com o que cinema é capaz e pode fazer. É verdade que Newman não coloca muito esforço em abrir suas adaptações, a parte das maravilhosas cenas com os lenhadores de Uma Lição para não Esquecer (filmadas pela segunda unidade e entre as mais cuidadosas cenas de trabalho num filme de Hollywood) há muita pouca ação elaborada em qualquer um deles. Os filmes de Newman são textos de câmera que são todos sobre como modular o drama. Para além do seu talento natural para lidar com atores, a maior arma de Newman é seu controle de ritmo. Filmes como O Preço da Sedução e A Caixa de Surpresas são montados com rara precisão. A câmera está sempre posicionada de forma fazer seus cenários simples dramaticamente ressonantes. As casas de O Preço da Solidão e The Glass Menagerie são armadilhas expressivas, ambas bastante simbólicas das limitações dos seus personagens sem com isso sufocarem o drama. Ele também tem uma negociação muito natural entre sentimento emotivo e contenção, um mestre de melodrama sóbrio que sempre acha a nota devastadora certa, nunca de bom gosto, mas sempre um tanto removida da ação. Ele também divide com Cassavetes um olho para o tipo de detalhe absurdo que traz uma cena a vida e move as situações para além da miséria diária. Chamar Newman de não-cinematográfico faz tão pouco sentido quanto chamar Ingmar Bergman e ao menos o trabalho de Newman nunca parece prestes a se encerrar na própria mitologia.
Quanto as atuações elas são de fato excepcionais. Newman é claro era casado com Woodward, a mais tecnicamente dotada atriz a se tornar uma estrela de Hollywood e ela entregou a ele um pouco do seu melhor trabalho. É justo dizer que somente Raquel, Raquel entre as suas parcerias é entregue por completo a ela. Um filme todo sobre a subjetividade da personagem dela no qual Newman frequentemente opera de maneira a parar e respirar filmando a Raquel de Woodward enquanto ela faz um ajusto de contas sobre sua vida, o que aconteceu, as suas opções e o que está por vir. Nos seus outros filmes com Woodward, ela é posicionada como parte de um elenco maior. Mesmo O Preço da Solidão que a princípio pode parecer um perfeito veículo para prêmios por vezes mostra Woodward como escada para as duas jovens atrizes que interpretam suas filhas, ambas com atuações incrivelmente sensíveis com a filha de Newman e Woodward Nell Potts oferecendo uma atuação doida e natural como nenhuma outra de ator mirim que conheço. Newman tem um olho nato para emprega coadjuvantes de carreira nada glamorosos com uma forte presença vivida como James Olsson (Raquel, Raquel), Richard Jaeckel (Uma Lição para não Esquecer), James Broderick (A Caixa de Surpresas e James Naughton (The Glass Menagerie). Michael Sarrazin que era provavelmente o mais inexpressível jovem galã do começo dos anos 70 está excelente como o ponto de vista de Uma lição para Não Esquecer. Karen Allen e John Malkovich nunca estiveram melhores do que como os filhos de Woodward em The Glass Menagerie (Malkovich que é um ator tão cheio de tiques que por vezes suspeita-se que só faz sentido em filmes de gênero super artificiais ou no palco é uma especial revelação fluido e afável como nunca mais se permitiu a ser) E por fim há a fúria pragmática de Christopher Plummer em A Caixa de Surpresas, em especial nas suas cenas com Woodward no qual todo uma vida de quases e decepções é reconhecida sem nenhuma parte ceder um dedo. Uma atuação de carreira num filme que é todo de gente boa (Woodward, Broderick, Melinda Dillon. Sylvia Sidney) fazendo trabalho excepcional.
Quando penso no trabalho de Newman a primeira coisa que me vem à mente é esta sequência de Harry and Son com Robby Benson reconectando com Ellen Barkin. Eles foram um casal de colegial, ela traiu ele e este por sua vez resolveu dar de ombros e ignora-la, ela está gravida de alguém que nem sabe bem quem é e eles ainda estão evidentemente atraídos demais um por outro com todas essas decisões ruins pairando por cima. Ele oferece ajuda-la carregar as compras de supermercado e a câmera de Newman os acompanha enquanto toda essa história pessoal melodramática é oferecida contra ação naturalista. O que é tão bom aqui é como Newman permite jogar com a dança de ressentimento deles com toda a atração e repulsa mutua, a qualquer momento a sequência parece pronta para explodir no pastelão ou desandar na violência. Um desses momentos honestos em meio a pura confusão humana que filmes não permitem com frequência.
A longevidade de Newman como estrela, como o mais adaptável dos discípulos do Actor’s Studio, pode por vezes mascarar o quanto é uma figura dos anos 50. E como diretor ele é um claro descendente do melodrama do pós-guerra. Há um que de Kazan no seu trabalho e uma boa dose de Nicholas Ray no seu gosto por alienação e desejo (é justo apontar que Raquel, Raquel divide seu roteirista com Juventude Transviada). A intensidade emotiva de boa parte dele vem dessa mesma tradição do pós-guerra também, é intrigante observar como as adaptações literárias de Newman colocam estes sentimentos em cenários relativamente naturalistas, enquanto as teatrais tendem a transcorrer em um mundo mais abstrato. Todos esses filmes são previstos num desejo de desaparecer num mundo que lhes negligencia, mas há algo mais demonstrativo nos mais teatrais.
Pode se começar por um olhar Uma Lição para não Esquecer para apreciar o trabalho de Newman. Ao contrario desses outros filmes, este não é um filme que Newman planejou dirigir a princípio apenas assumindo-o quando o diretor original Richard A. Colla foi demitido no começo das filmagens. É adaptado de um livro do Ken Kelsey que eu achei impossível de ler quando tentei, mas que já me disseram ser incrível para quem se rende aos seus charmes inflados (Kelsey escreveu o logo depois de Um Estranho no Ninho e a poucas tentativas mais transparentes de “grande romance americano”). É bem no estilo dos vários filmes antiautoritários com elogios ao individualismo americano que Newman protagonizou nos anos 60. Ele interpretada o filho mais velho de Henry Fonda e Sarrazin o caçula sensível (os castings deles tão previstos em associações icônicas que suspeito o estúdio tentou Peter Fonda e aceitou na má vontade Sarrazin depois daquele rir da cara deles). É um filme bastante sobre trabalho, cheio de cenas panorâmicas da equipe de Fonda cortando arvores e uma imersão na natureza e trabalho físico que o separa de outros filmes de Newman. Uma Lição pra não Esquecer tem um certo sentimento de filme menor da Warner dos anos 30 enquanto substitui a cumplicidade de classe trabalhadora dos anos do New Deal desses com um cada um por si, um individualismo onde relações de sangue dominam e solidariedade de classe é o inimigo (há um ensaio a ser escrito sobre como um dos melhores filmes americanos sobre trabalho é sobre fura greves cujo lema é não ceder qualquer espaço). Newman empresta um pragmatismo a ação, tirando o pé de todos os fogos de artificio dramáticos já que este não é um filme sobre quem está disposto a falar sobre os próprios sentimentos tanto quanto beber eles (é por exemplo bastante óbvio que Sarrazin mantém um caso com a esposa de Newman, muito bem interpretada por Lee Remick, mas só temos as linguagens corporais dos atores para confirma-lo).
Newman está feliz por catalogar todo este comportamento mesquinho tanto quanto busca posiciona-lo contra o expressivo trabalho em locação com ênfase no verde das arvores. Então chega o momento, uma árvore cai atinge Fonda e deixa Jaeckel quase submerso no rio, o que se segue é uma das maiores comédias de erros de ira divina com ambas as situações dando errado de forma completa escalando rapidamente, intensa, física, engraçada e triste em igual maneiras. Newman tentando tirar Jaeckel de baixo da arvore antes dele afogar é a cena da sua obra como diretor que tem chances de se ouvir falar, é cuidadosamente detalhado, com o lado de retribuição cósmica nunca afastado da percepção e como sempre em Newman a modulação da construção é perfeito, nunca se tem dúvidas de para onde ela vai, é uma das mais horripilantes cenas de morte prolongadas do cinema (Jaeckel recebeu uma indicação ao Oscar nos méritos dela), mas o cuidado de Newman de chegar nela e toda a atenção na relação entre festo e natureza se paga.
Qual foi a razão de Newman para demitir Colla, de certo teve pouco a ver com destacar a sua performance. Se algo distancia Uma Lição para não Esquecer de um filme como O Indomado é o quanto Newman se submerge no grande elenco. De fato, na maior parte do tempo ele baixa o tom enquanto permite que Fonda, Sarrazin, Remick e Jaeckel brilhem até uma sequência próximo ao fim após o desastre se abater e ele filme a si tentando compreender tudo o que aconteceu, o que seria se, e a realidade do que foi. Um ótimo pequeno momento de atuação. Existem muitas cenas como essa nos filmes de Newman, sequencias com todo peso de uma longa história e atores contra a parede e lançando um olhar profundo sobre como as coisas são e poderiam ser. Raquel, Raquel é quase todo construído através de cenas como essa. Ele estabelece um tom para todos os filmes de Newman que se seguem. Se os personagens dele sempre parecem repensar onde estão em suas vidas, é porque seus filmes são todos sobre lidar com a relativa falta de perspectiva disponível. Um típico personagem de Newman recebeu uma mão ruim da vida e está procurando negociar para tirar ao menos algo dela.
Raquel, Raquel é sobre uma mulher de 30 e poucos anos decidindo que quer algo mais da vida, mas é surpreendente o quão pouco o filme segue a formula de abertura para o mundo que tal premissa promete. No lugar, Newman se dedica a apresentar quão desprovido de potencial este mundo é, descrevendo de forma bem seca a vida na pequena cidade e seus poucos prospectos. É tudo nada sentimental e as partes que deveriam significar potência como o nada promissor pretende de Ollson são bem quietas. Se Raquel alcança alguma liberdade tem mais a ver com autoconhecimento, justo para um filme todo sobre a interioridade dela. É menos um filme de fuga do que uma tentativa de entender uma vida vivida e não-vivida e tentar achar alguma possibilidade para o estar por vir.
O Preço da Solidão e The Glass Menagerie são como filmes espelhos ambos focados em Woodward como uma mãe difícil e controladora e seus efeitos sobre seus filhos, ambos bastante dedicados a miséria das relações familiares (e são até os dois nomeados a partir de elementos bastante simbólicos sobre as possibilidades reais e estilhaçadas das personagens). Eles são também é claro a sua maneira, ficções de fuga de cada um, sobre os sonhos alternativos contidos naquelas vidas. São também filmes opostos nas maneiras como todos estão amarrados na intimidade em o Preço da Solidão e isolados no drama em The Glass Menagerie. Existe muito de calor e amor no primeiro e ainda mais daquele sentimento constante de campo de batalha do lar com todos os pequenos ressentimentos e gestos passivo agressivos que são tão verdadeiros da vida familiar. Woodward, Potts e Roberta Wallach tem uma quimica maravilhosa e a observação concentrada de Newman envolve um movimento natural entre o mundo desesperançado e a resistência da filha mais jovem a ele. Existe uma qualidade resignada discreta em como os sonhadores de Newman negociam suas opções limitadas nunca mais do que em The Glass Menagerie. Newman filma toda a peça (não há sequer um credito de adaptação) sem uma única sugestão de abri-la, mas através de posicionamento de câmera preciso ele a coloca bem distante de teatro filmado. As indas e vindas do filho mais velho na primeira parte e a corte entre a filha e seu pretendente mais tarde são observadas contra a vastidão do cenário da casa que lhe oferece contexto tanto quanto a natureza em Uma lição para não Esquecer. A fotografia do Michael Ballhaus é dos seus melhores trabalhos e reforça a sensação de que não há nada de pequeno no drama humano encenado naquele lugar. A maioria dos adaptadores de Williams assumem que a melhor maneira de lidar com aqueles desejos reprimidos contidos ba sua escrita é deixar ele se elevar em toda a sua glória grotesca, mas Newman a carrega dentro do peito e descobre que ele é ainda mais devastador como todos até a mãe de Woodward apenas a reconhecem como aceitação resignada.
Esta aceitação pragmática está por todo A Caixa de Surpresas que permanece a obra prima de Newman. Adaptada de uma peça recém premiada de Michael Cristofer e filmada para TV, ele permanece pouquíssimo visto a despeito de alguns defensores de respeito sobretudo entre críticos europeus. É um filme muito franco e direto. A Caixa de Surpresas pode ser sobre doença terminal, mas ele se recusa a se mover rumo a qualquer grande confrontação dramática ou revelação. Todas as três personagens morrendo chegaram a um acordo sobre sua condição muito antes da câmera chegar neles. Não há pena ou sentimento, mas ainda assim há drama. Newman está interessado em todos os gestos acumulados nessas conversações com entes queridos, estes últimos ritos daqueles por partir. Há muito de história previa para si lidar, ainda mais por ela estar a ser interrompida tão em breve. As cabanas nos quais os encontros se dão são minimalistas e apresentadas pelas imagens de Newman como quase abstraídas do mundo, é tudo bastante quieto e clinico. Newman imagina melodrama como processo. Faz sentido num filme sobre aceitar a morte. A maior das emoções dramatizada de forma a seca-la por complete enquanto a libera para ser ainda mais sentida.
Mortalidade também está no centro das preocupações de Harry and Son. Este é o mais difícil de classificar dos seus trabalhos. De certa maneira, tem mais relação com um par de veículos tardios seus O Indomável do Robert Benton e Empire Falls do Fred Schepisi (ambos adaptados de romances de Richard Russo, o segundo foi também a última aparição em cena de Newman como ator). Todos são panoramas comico episódicos da vida da classe trabalhadora construídos sobre a presença de Newman como um malandro não reconciliado e sua relação difícil com um filho. Harry and Son se diferencia dos outros filmes que Newman dirigiu por ser aquele que se assume abertamente como um veículo para ele mesmo que longos blocos de ação sejam entregues para o filho de Robby Benson. Newman interpreta um viúvo que acabou de perder o emprego na construção civil, tem problemas de saúde e um filho metido a escritor rebelde cuja falta de perspectiva lhe enlouquece. Como mencionei mais cedo Newman que fez 59 anos à época do lançamento do filme é plenamente consciente de Harry significa o fim dos seus dias de galã. Muito como Os Imperdoáveis de Eastwood, Harry and Son é sobre a superestrela envelhecendo para além do aceitável da sua imagem e não será acidente que Newman seguira ele com A Cor de Dinheiro de Scorsese no qual não só reinterpreta um dos seus papeis mais famosos 25 anos depois, mas o faz contracenando com Tom Cruise cuja função extra oficial no cinema americano do fim dos anos 80/90 era informar a estrelas envelhecidas que o tempo deles chegava. A maior parte do filme se move entre as cenas tumultuadas entre Newman/Benson e vinhetas cômicas dos muitos empregos de Benson e a crescente irritação de Newman com sua falta de poder (a sequência entre Benson e Ossie Davies é especialmente bem imaginada). De alguma maneira, a atuação de Newman soa cheia de energia no que tem de focada e especifica e cansada no seu retrato de homem escapando cada vez mais a cada momento. A atuação de Benson é um gosto adquirido, ele não é exatamente bom em nenhuma maneira convencional e tem uma tendência de soar mimado de formas nada produtivas, mas ele tem uma abertura e honestidade refrescante que servem as intenções do filme. Newman cobre todo este terreno de maneira tão sossegada e sorrateira que o filme parece enganadoramente leve que deve tomar boa parte da sua duração até a ficha cair de quão cuidadosamente ele investiu a relação central. É também a única vez que Newman dirigiu a si com Woodward e há um sentimento de intimidade e história mutua nas cenas deles juntos.
Há este momento em Harry and Son em que Newman lê a primeira carta de aceitação literária do filho, ela é escrita da forma mais óbvia e esperada, mas tanto o ator como o diretor seguram o tom e não permitem que ela soa falsa e melosa, há um instante de sentimento reconhecido e eles partem para assuntos mais terrenos, uma cerveja dividida, o filho a ajudar o pai a trepar. Porque o sentimento só dá as caras por um olhar roubado, ele permite ressoar pelo restante do filme. Isto é muito representativo da obra de Newman como um todo, este mais discreto dos autores, dedicado a modular o drama a partir desses poucos momentos em que vidas que tem poucas opções são balançadas por um momento de possibilidade.
Filipe, seria possível a republicação ou o envio particular de sua antiga lista dos 100 filmes americanos? Está difícil de encontrá-la, e eu gostaria muito de conhecê-la. Obrigado.