Cartas de um Continente Desaparecendo

mysteriesofcinema

(English version here)

Há uma nova edição capa mole de Mysteries of Cinema do Adrian Martin sendo lançada e me parece uma boa oportunidade de retornar ao livro (a capa dura foi publicada dois anos atrás e era tão cara que imagino só bibliotecas compraram). Esta é uma coleção de textos perdidos de Martin com 26 artigos publicados entre 1982 e 2016. O mais antigo chamado “Scenes” é uma tentativa de lidar com momentos fragmentários em filmes num estilo similarmente radical e o mais novo ‘The Files We Acompany” (co-escrita pela parceira de Martin Cristina Álvarez López, também uma excelente crítica de cinema) é ele próprio uma coleção de textos menores que acompanham o trabalho atual de Martin e Lopez com crítica em vídeo. A oposição entre eles diz bastante sobre a riqueza e variedade do livro.

Eu provavelmente devo mencionar aqui que não só venho lendo os seus textos por uns 20 anos, mas que considero Adrian como um amigo e em que algumas oportunidades ele me publicou nas suas revistas online. Ele vem nos últimos anos reclamando recorrentemente de que eu ainda não assinei o Patreon do site dele depois de eu passar 15 anos fazendo piada em público com o “lançamento em breve” na sua primeira página (desculpe Adrian, eu não tenho cartão de crédito internacional). Então, esta é uma apreciação vinda de um espaço próximo e amigável.

Martin começou sua carreira como crítico de cinema e cultura na Australia no começo dos aos 80 e se mudou de jornalismo para academia em 2006 (ao menos até o seu trabalho recente no seu website pessoal). Pode-se dizer que Mysteries of Cinema funciona como uma revisita a sua obra inicial do ponto de vista da tardia. É um livro incomum, uma coleção de um ótimo crítico de cinema que inclui muito pouco do que pensamos como crítica de cinema. É uma coleção de textos perdidos que provavelmente não cabem bem em outro lugar, com ênfase em olhares panorâmicos sobre uma série de temas que parece existir nas fronteiras da academia sem jamais se comprometer com ela. Teoria cinematográfica está sempre em foco e Martin é um crítico muito consciente dos seus múltiplos desenvolvimentos, mas que se mantém orgulhosamente a parte deles. De fato, o olhar suspeito de Martin para teoria nos termos que ela foi desenvolvida na academia dá as caras em múltiplas oportunidades. Trata-se de uma hostilidade para com um olhar institucional e como teoria cinematográfica funciona dentro dela. Pode-se chamar Mysterues of Cinema de um livro orgulhoso de pensamento cinematográfico no lugar de teoria. O seu título é uma referência a Mistérios de Lisboa do Raul Ruiz e ele tem certamente mais a ver com o Poeticas do Cinema de Ruiz do que digamos o trabalho de David Bordwell.

A conexão com Ruiz é útil. Mistérios de Lisboa como boa parte dos filmes de Ruiz é sobre as possibilidades de ficção. Uma coleção de contos, mitos, conspirações, tramas e contra tramas. Ruiz como sempre está interessado no cinema como deposito da casa da ficção. Ruiz é um cineasta e Martin um crítico de cinema. Seu livro esta óbvio muito interessado em como filmes apresentam as coisas que querem mostar, mas esta ainda mais interessado em como se assiste a filmes. É um filme com dois interesses principais, o espectador de cinema e a crítica de cinema como prática. O principal elemento organizador do livro é como filmes são recebidos das mais diversas formas. Meu texto favorito aqui é chamado “Entities and Energies” e é um dos poucos olhares mais próximos sobre filmes individuais. Ele lida com clássico avant garde Outer Space de Peter Tscherkassky e com The Entity do Sydney J. Furie, o quase esquecido filme de terror que ele usa como fonte. É sobre como um tipo de imagem se transforma em outra, a relação entre filme experimental e narrativo, como ambos são recebidos pelo público e como críticos processam e reconfiguram essas diferenças. É um terreno amplo para se cobrir em umas 15 páginas e oferece uma boa introdução a muitas das preocupações de Martin.

O coração do livro é provavelmente seu artigo mais datado “No Flowers for the Cinephile”, uma longa história da cinefilia australiana publicada no fim dos anos 80. É tanto um texto informativo para aqueles entre nós que se interessam por essas histórias localizadas, como uma evocação tanto de cinefilia como uma forma de ir à igreja bem atrativa para alguns de nós e da forma de alienação de cinefilia que existe na prática dela bem distante da França/EUA como centros da cinefilia como ideia.  É um artigo muito pre internet e uma janela sobre uma cultura cinematográfica muito diferente, mas que se beneficia muito da facilidade com que se move do local para o global. O internacionalismo de Martin sempre foi junto da sua mente aberta seus pontos fortes como crítico (certa vez ele me recrutou para organizar uma coletânea em inglês do Jairo Ferreira!) e este artigo é uma forma bem particular e rica de aplicar este internacionalismo para um tema local. O que ele tem de datado é parte do que tem de charmoso, o que tem de tão rico e evocativo tem relação com o que leitor traz para ele, o artigo cobre a cinefilia australiana pelas três primeiras décadas da vida de Martin (e como tal é tão autobiografia como crítica cultural) e as três décadas de distância do nosso agora parecem igualmente essencial para como lê-lo (e a Mysteries of Cinema como um todo).

Esta abertura de Martin dá as caras repetidas vezes nos muitiplos objetos cobertos ao longo do livro e ele está igualmente em casa escrevendo sobre tendências em torno do cinema de autor pós Nouvelle Vague ou thrillers de invasão domiciliar do começo dos anos 90. Mysteries of Cinema apresenta Martin como historiador principalmente na forma como traça uma série de evoluções que podem estar ligadas tanto a questões formais como de narrativa (o capítulo sobre filmes de gangster é um ponto alto). Há ótima escrita sobre a sociologia de filmes de gênero esquecidos (a paixão de Martin por filmes adolescentes dá as caras como esperado) e surrealismo no cinema e a forma como flui-se naturalmente entre um e outro é um grande mérito formal do livro. O que poderia ser uma limitação, os temas muito ecléticos ajudam a iluminar uns aos outros.

Ele está interessado sobretudo em como filmes afetam suas plateias e os melhores olhares de fôlego histórico lidam com mudanças em processos específicos pelo tempo. Nisso, o texto de Martin traz a memória o melhor do trabalho de Raymond Durgnat, outro muito democrático crítico de cinema cujo trabalho se fecha sobre pensar em como nos nos relacionamos com filmes e como os filmes se relacionam de volta conosco. Mysteries of Cinema é uma história de fascinação com filmes, de uma ideia de espectador de cinema que é por definição muito participante. Como Durgnat, Martin é um passeur cinematográfico muito perceptivo (podemos pensar aqui no artigo sobre o gótico feminino pela história do cinema) traçando conexões que são tanto sobre questões formais como elas são sobre noções de assistir filmes. A crítica importa na medida que traça esses múltiplos modos e como cada um deles nos afeta a sua maneira.

E isso nos leva ao assunto da crítica de cinema. A típica generosidade de Martin também significa que ele está em constante dialogo com seus pares. Isto pode dar as caras de múltiplas maneiras como a já mencionada suspeita sobre a academia ou como o artigo sobre sadismo no cinema contemporâneo é bastante consciente da recepção dos seus autores centrais como Haneke e Tarantino e da forma como o capítulo sobre comedia romântica contemporânea se desdobra numa tentativa de lidar com o gênero para além dos principais textos críticos sobre ele. A crítica é de fato tema central de apenas alguns textos como os da seção de abertura mais prepositiva, o último ensaio que tem as correntes atuais de crítica em vídeo em mente e o maravilhoso “The Offended Critic” sobre ultraje moral na escrita de cinema, uma fascinante e nunca simples exploração de como o texto crítico pode explorar reação moral contra filmes que nunca toma saídas fáceis, mas permanece incomodo e ambivalente (como Adrian nos lembra não se escreve sobre cinema sem se tornar o crítico ofendido uma vez ou outra). Pode-se dizer que a seção inicial e as duas finais lidam com os específicos de como se coloca o pensamento sobre cinema no papel enquanto as seções do miolo com o assistir cinema (com “No Flowers for the Cinephile” cobrindo os dois meios). Pode ser útil observar que eu conhecia bem esses capítulos iniciais e finais e quase nada dos do miolo.

Mysteries of Cinema pode parecer um objeto curiosamente distante, longe tanto do jornalismo cinematográfico como da academia tal qual atualmente praticados. Martin pode ser um crítico igualmente fascinado com Kiarostami, Garrel ou Ferrara como ele é por comedias românticas, thrillers baratos e filmes adolescentes. Um clássico crítico de cinema de baixa/alta cultura (quando eu primeiro descobri Martin como um universitário de 18 anos, sua posição como crítico de cinema reagindo contra o meio era de certo seu principal apelo), mas um que parece bastante alienado tanto das feiras dos grandes festivais de cinema que dominam as discussões críticas serias e a disneyficação do cinema pop que costumava amar. Isto pode ser observado na sua decisão por volta da mesma época que este livro estava sendo preparado de concentrar seus esforços num website pessoal que parece voltado para grandes fãs depois de um longo período envolvido com revistas internacionais online (um movimento que traz à lembrança a maneira como certos músicos pop de meia idade decidem-se por se voltar a um universo de fãs hardcore reduzido, mas passional) e esta por todo este livro tão difícil de classificar. Mysteries of Cinema não parece pertencer a cultura cinematográfica atual em muito das mesmas maneiras que é uma coleção de crítica cinematográfica sem crítica de cinema e um livro de teoria cinematográfica com grandes suspeitas sobre a academia. A primeira seção é chamada “cartas de introdução” e este princípio epistolar acompanha todo o livro, eu disse mais cedo que era um livro de “pensamento de cinema” e não de “teoria de cinema” e parte do que é inestimável sobre ele é como pode ser visto como uma coleção de cartas de um mundo cinéfilo que é a cada dia mais frágil.

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