(English version here)
(artigo sobre a obra do Mojica aqui)
Artigo escrito originalmente para Revista Paisá em Agosto de 2008 quando do lançamento comercial de Encarnação do Demônio.
E eis que estreou o mitológico Encarnação do Demônio. 40 anos em produção. O nosso The Other Side of the Wind, com a diferença – bem típica do cinema brasileiro – de que no lugar de não-finalizado, nossa versão era não filmada mesmo. Para um filme desse tamanho, alguns apontamentos no lugar de uma crítica:
— Os fãs do José Mojica Marins nunca lhe prestaram um grande favor ao tratar seus filmes de maneira quase litúrgica. Existem muitas maneiras de “limpar” este cinema e da mesma forma que muitos temiam pelos efeitos que o atual sistema de produção poderia ter sobre Encarnação, nosso olhar pode por vezes fazer ele mesmo este serviço sujo. O maravilhamento que as imagens de Mojica causam surge lado a lado com o que o seu cinema tem de torto e é sempre bom lembrar disso. Portanto que fique claro, trata-se de um filme memorável, mas muito longe do perfeito.
— Não deixa de ser um timing curioso que faz Encarnação do Demônio chegar até nós em 2008. Uma das muitas características fascinantes dos filmes do Mojica foi sempre a facilidade com que ele mapeia e se conecta com as pulsões mais conservadoras da nossa sociedade. Como estamos num dos nossos fluxos mais excessivos de conservadorismo, é uma boa hora para o Zé voltar a nos assombrar. O roteiro foi atualizado, mas a sua lógica permaneceu intacta. É a natureza cíclica da nossa sociedade destilada à perfeição.
— O desafio que Mojica, e de certa forma o produtor/montador Paulo Sacramento e o co-roteirista Dennison Ramalho, precisava lidar é uma questão de imagem. O temor e fascinação que a figura de Zé do Caixão projetava nos anos 60 se tornaram uma impossibilidade. Justamente porque Zé do Caixão causava horror menos pelos atos de violência que realizava e mais pela sua própria imagem. Dentro da lógica dos filmes, Zé, o pagão, era tão vital para causar pavor no espectador quanto Zé, o torturador de mulheres. Com o tempo, porém, a imagem do personagem por outras mídias se transformou na figura cult e espécie de símbolo/patrono da podreira cultural de todo o tipo. Goste-se ou não, o estrago já estava feito e a prova da grande inteligência de Mojica e seus comparsas é que eles sabem que não podem ignorá-lo.
— A operação praticada por Encarnação do Demônio é simples: pegar o valor da iconografia que sempre foi importante para a figura Zé do Caixão e transformar seus termos, mas ao mesmo tempo a levar ainda mais para o centro da narrativa. Tudo no filme gira em torno do ícone. A começar por um Zé do Caixão muito mais sedutor, capaz de trazer consigo um séquito de admiradores e de encontrar belas mulheres mais do que dispostas a carregar seu filho. Não deixa de ser uma bela metáfora para a carreira do próprio Mojica: o Zé do Caixão de Encarnação é pop, mas é ainda mais marginal. Antes, sua profissão e sua figura imponente lhe garantiam uma posição de algum destaque na comunidade, agora está escondido num barraco.
— Como sempre nos filmes de Mojica, as atuações variam muito da grandeza de Helena Ignez e Débora Muniz aos seguidores constrangedores do Zé. Mas Jece Valadão, Adriano Stuart e Milhem Cortaz são brilhantes como o trio de algozes de Josefel Zanatas. Graças a eles há um elemento novo em Encarnação: podemos não estar diante do melhor filme de Mojica, mas é o primeiro em que as cenas mais simples, que existem exclusivamente para mover as maquinações da trama, são por vezes memoráveis.
— A escolha de Valadão certamente não foi acidental. Um ícone de outro cinema popular dos anos 60 e cuja reputação hoje é ainda mais marginalizada que a de Mojica. O confronto deles nunca toma conta do filme como deveria – em parte porque a morte de Valadão infelizmente rouba de Encarnação um pouco da sua coerência narrativa e temática -, mas paira sobre ele assombrando-o da mesma maneira que Zé é assombrado pelos fantasmas de suas vítimas.
— Esta subtrama não deixa de ser bem indicativa de como o cinema de Mojica funciona: superficialmente é bastante óbvia e um tanto mão pesada, mas há algo de estranhamente prazeroso nas imagens dos fantasmas preto e branco que lhes dão toda uma força especial e elas somam neste painel geral de um Mojica muito consciente tanto do seu passado quanto do seu legado.
— Graças aos fantasmas de Zé, Mojica recria o final de Esta Noite Encrnarei no Teu Cadáver. Como peça de resistência estética é um momento político como poucos. Justifica por si só o filme.
— Há uma ênfase maior na violência física em Encarnação. Os mais apressados foram rápidos em apontar uma suposta influência de sucessos de horror recentes como as séries O Albergue e Jogos Mortais. É preciso, porém, apontar que não há necessariamente uma grande novidade nas cenas de tortura bastante explícitas presentes aqui. O cineasta sempre teve uma queda por estas situações, que afinal ajudam a realçar os jogos de poder que tanto lhe fascinam. O terceiro episódio de O Estranho Mundo de Zé do Caixão, em especial, é uma sessão de tortura que em nada deve ao novo filme.
— Se há alguma concessão ao horror moderno, ela chega mais pela influência do co-roteirista e assistente de direção Ramalho, um grande cultor de gore contemporâneo, como seus curtas e a seção de filmes de horror do Festival Internacional de Curtas de São Paulo, curada por ele, bem atestam.
— Ponto que talvez fira algumas sensibilidades autoristas: a troca de colaboradores de Rubens Lucchetti por Ramalho levou Mojica do lisérgico ao visceral.
— Falando em Lucchetti, a única cena supostamente pouco alterada do roteiro original – a visita de Zé ao purgatório – nos lembra que podemos ter muitos cineastas mais elegantes do que Mojica, mas nenhum tão hábil em criar uma sequência de impacto a partir de imaginativas soluções visuais.
— Efeito curioso do intervalo entre os filmes: se antes a busca pelo filho perfeito existia principalmente como um gancho dramático para mover o personagem, ela agora parece tomar conta do próprio cineasta. O filme todo parece exalar a necessidade de continuar o sangue.
— Agora, querem a evidência de que este é um filme especial? Ela não demora a chegar, basta checar a primeira sequência onde o diretor da prisão vai liberar o Zé. O recorte da luz do José Roberto Eliezer, a forma que a câmera acompanha o personagem, a presença de cena de Luis Mello – um dos nossos atores mais maneiristas, pela primeira vez bem usado num produto audiovisual – e por fim a apresentação de Zé do Caixão. Trata-se de um mergulho no inferno de uma simplicidade terrível. Uma ideia de inferno palpável como raras vezes encontramos. Não surpreende. O cinema de Mojica é feito com tripas de verdade. Seu sangue está ali impresso na película. Não é com muita freqüência que podemos dizer isso.