(English version here)
Boa parte das reações ao novo filme de Todd Haynes, O Preço da Verdade, parecem se centrar no seu status convencional, sua posição de um filme que Haynes fez como favor para seu amigo Mark Ruffalo, não um verdadeiro filme de Haynes, mais um projeto fracassado de Oscar. Há duas coisas a se observar diante de tais descrições: primeiro, uma certa suspeita em relação a um tipo de filme político, uma que surge de uma falta de paciência justa para com filmes que usam sua temática importante como muleta, se é verdade que O Preço da Verdade é um filme importante que sabe ser um filme importante, isto em si não é nem algo bom ou ruim (veja também os bons e maus filmes de Ken Loach). Em segundo lugar, a acusação de convencional me parece bastante estranha. É verdade que Haynes começou sua carreira como um artista provocador em filmes como Veneno (um bom título para este aqui também), mas ele tomou uma decisão consciente rumo a acessibilidade muito tempo atrás. Nenhum dos filmes de Haynes das últimas duas décadas é especialmente radical, filmes como Longe do Paraiso e Carol investem pesadamente em como expressar desejo e temor, mas o fazem enquanto operam por caminhos narrativos bem reconhecíveis. Quando o seu remake para HBO de Mildred Pierce obteve uma recepção fria, isto se deveu muito mais o analfabetismo visual da maioria da crítica de TV do que qualquer gesto radical, o problema era minissérie se assumir como melodrama no lugar de reforçar os sinais de dramaturgia de prestigio. Entre os filmes tardios de Haynes somente Não Estou Lá trabalha contra estruturas narrativas convencionais e se o que importa nos demais seja sua abordagem, é justo apontar que este tem mais relação com uma intensificação de sentimentos do que seu passado de especialista em semiótica. O trabalho de Haynes passeia mais em emoções do que ideias e nesses termos O Preço da Verdade é um sucesso.
Não é como se Haynes não possa contrabandear algum comentário para as margens da ação, por exemplo, há uma cena muito boa no qual o advogado de Ruffalo vai a uma festa no qual as únicas presenças não-brancas são os garçons negros que faz um bom trabalho de ajudar a estabelecer a existência privilegiada dele. Na maior parte do tempo O Preço da Verdade opera a partir de um sentimento unidimensional: o horror do reconhecimento e a paranoia que surge a partir dele. Ruffalo pega um caso contra uma corporação conscientemente envenenando agua e o segue por duas décadas. Pode ser útil compara-lo com dois outros veículos anteriores de Ruffalo. O Preço da Verdade tem mais em comum com Zodiaco com sua ênfase na investigação de longa duração e um mal que tudo envolve do que com o vencedor do Oscar Spotlight. Eu majoritariamente gosto do segundo, mas ele tem pouca coisa em mente para além de uma apresentação segura de investigação jornalística, é uma narrativa funcional bem orgulhosa disso (a maior limitação justamente o quão pouco se interessa pelas suas vítimas de abuso para além de pontos de partida narrativos). As imagens não poderiam ser mais simples e claras, o ultraje moral um valor por si mesmo, aqueles que sofrem consignados a uma existência segura fora da tela. Por contraste, O Preço da Verdade é um thriller paranoico, um filme sobre privilegio sendo consumido. Ruffalo não é algum advogado ativista cuja luta contra abusos devemos comemorar, mas um veículo forçado a lidar com as próprias limitações.
O Preço da Verdade é apresentado numa primeira pessoa do plural que pode ser acusada de ser politicamente ingênua, mas é bastante urgente. Nós somos envenenados todos os dias, o nosso tempo está terminando. É uma linguagem bem próxima aos movimentos ambientais atuais que raramente dá as caras em filmes. Algumas das sequencias mais frágeis do filme são as caseiras, com Anne Hathaway limitada a figura padrão da esposa sofredora que oferece suporte (momentos quando o filme sofre de falta de imaginação), mas há algo muito eficaz na sua ansiedade, na certeza que a fonte envenenada vai cobrar o preço dos seus filhos. O Preço da Verdade está focado não satisfação da luta atual, mas no temor do que está por vir.
O filme é dividido em duas metades. A primeira é uma história de detetive, uma investigação sobre as raízes do veneno. A segunda metade é uma história de horror, uma exploração das consequências do veneno. Ele se move da certeza de que algo está errado, para a ansiedade do conhecimento. Não é acidente que o filme comece com uma cena prosaica, mas dominado de pavor de adolescentes se preparando para entrar num lago nos anos 70, uma cena que poderia pertencer a qualquer filme de horror de revolta da natureza desde Os Pássaros (e que também traz a mente a abertura do já mencionado Zodíaco). Desde este primeiro momento o filme estabelece os seus riscos. O que registramos da Dupont não é o exército de advogados de filmes similares, mas o sorriso reconfortante do executivo de Victor Gerber nas cenas iniciais e este sentimento constante de ameaça. O Preço da Verdade frequentemente segue Ruffalo em sequencias que reforçam sua ansiedade e paranoia (Ruffalo atua sozinho um tempo bastante incomum aqui). Num filme dos anos 70 o personagem temeria que algum tipo perigoso o abordaria a qualquer momento, mas em O Preço da Verdade a fonte do perigo é o ambiente em si, o que pode se fazer quando o que é assustador está no ar? Tudo aqui se move para este misto de conhecimento e tremor. Muito como a obra prima anterior de Haynes A Salvo (1994), O Preço da Verdade se apresenta como um horror ambiental.
Haynes e seu grande fotografo Ed Lachman combinam para muitos momentos perturbadores. Sequencias de um homem dirigindo um carro ou sentado à mesa da cozinha são tomados de ameaça. A desolação das cenas na fazenda acrescenta uma dose dolorosa de desespero econômico. A luz de Lachman é hábil em emprestar a maioria dos espaços de escritórios de advocacia a casas de classe média a lanchonetes a mesma aparência de rua sem saída. O ambiente parece sempre sufocar as personagens. Cada cena opera contra o relógio. O tempo já foi todo usado. As imagens de Lachman tendem a isolar Ruffalo. Ele é menos tomado pelo peso do caso, mas é uma espécie de versão século XXI do personagem de Roddy Piper no Eles Vivem de John Carpenter depois de colocar seus óculos escuros. Depois de que ele vê o que está acontecendo, já não há espaço para mais nada no seu campo de visão. A grande cena no miolo do filme com o advogado explicando primeiro para a esposa, depois para o chefe, depois para o cliente o que a Dupont fazia opera a partir de princípio similar. A verdade é uma forma de horror. A mecânica de thriller usada para avançar a agenda social do filme. Ele é melhor do que lhe dão credito em lidar com os aspectos de luta de classe envolvidos de questões ambientais, as formas diferentes com que cada um é afetado por elas e como alguns pagam um preço maior pelo abuso dos poderosos.
Aquela cena termina com o cliente (muito bem interpretado por Bill Camp) recusando um julgamento civil contra a Dupont, mas pedindo para Ruffalo “colocar todos na cadeia”, O Preço da Verdade opera a partir de tal raiva. A maior parte dos filmes similares são narrativas reconfortantes, apesar das dificuldades a princípio impossíveis, o sistema funciona. O advogado e/ou ativista corajoso vai chegar a verdade no fim. O Preço da Verdade é uma história no tempo presente desprovida de muito triunfalismo, é um conto de um desastre corrente cujas pequenas vitórias parecem por demais irrelevantes no grande esquema de uma parada de desgraças. Ajuda nisso que Haynes e Ruffalo tinham uma história real bem particular nas mãos, o verdadeiro Robert Billot não era Paul Newman em O Veredito, mas um sócio menor no tipo de grande escritório de advocacia que normalmente defenderia Dupont, ele não é demitido pelo seu ativismo, mas recebe algum apoio, ele tem recursos, múltiplos advogados veteranos ao seu lado, isto tudo reforça a inutilidade do processo, a ideia de que a maneira como a sociedade se organiza para pensar o meio ambiente é só um pequeno paliativo para um problema existencial. Nós vamos ser extintos enquanto ainda damos aos Duponts do mundo pequenas multas. O Preço da Verdade cobre duas décadas e assim como Zodiaco é muito bom nos acertos e erros e lentidão penosa de investigações de longo prazo. É intencionalmente desanimador. O veneno aqui é literal, existencial e institucional. O horror não poderia ser mais real.