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Boa parte da discussão entorno de 1917 se centra sobre a estrutura do falso plano-sequência. É sem dúvidas um truque de uma nota só espalhafatoso, mas ao contrário de Birdman, para ficarmos em outro “filme de Oscar” de alguns anos atrás que tentara truque semelhante, a qualidade imersiva tem sua função. Como veículo para o fotografo Roger Deakins, a verdadeira estrela do filme, e como espetáculo puro o filme entrega uma série de pequenos prazeres. O que ele tem de mais problemático surge menos na execução em si, mas na sua fundação e consequências por trás dela. Entendo porque cinéfilos podem ter desconfiança diante de tais truques, mas eu tenho por princípio tão pouco problema com eles do que com um filme fotografado em P&B, as reclamações me parecem terem sempre um subtexto reacionário que sugere que a forma como a maioria dos filmes comerciais é feita como uma forma ideal de que filmes devem buscar. Há algo profundamente estúpido em filmes como o péssimo Victoria (2015), de Sebastian Schipper, mas isso tem relação com como eles tentam elaborar dramas em condições que não o suportam, um filme como 1917 que na verdade é uma série de planos sequencias longos bem disfarçados como um só tem muito mais chances de se sustentar. Há pouco no formato para além de formalismo como uma forma de show Hollywoodiano e de uma ideia fraca de “guerra como uma carnificina continua”, mas isso em si é um ponto de partida a ser investigado e não um fim.
O plano continuo por vezes sugere o caos da guerra. Ele traz a mente de forma bem diferente a instalação de abertura do O Resgate de Soldado Ryan de Spielberg, ambos filmes de ação maximalistas sobre “guerra como inferno”. Spielberg consegue isso pela saturação de informação violenta, enquanto Mendes o faz ao adaptar a clareza da narrativa “homens numa missão” a uma forma maximalista similar. Alguns dos momentos dramáticos mais fortes surgem do contraste do movimento essencialista do ponto A ao ponto B e a filmagem chamativa entorno deles. Em momentos individuais, Mendes e Deakins combinam para encontrar imagens fortes e ocasionais pontos de escape do absurdismo da guerra. E é impossível negar que algumas opções de encenação sejam criativas e o fator “como eles vão conseguir resolver isso?” pode ser excitante. A câmera móvel de Deakins é sempre expressiva quando negociando a passagem pelo espaço dramático tenso. Em algum momento, 1917 cai na camisa de força do seu formato, há uma lei de resultados reduzidos para tal truque e o que é espetacular num primeiro momento é meramente tecnicamente competente na quinta vez. Algumas das decisões tardias parecem mais uma questão de levantar armadilhas para Deakins do que criar novas possibilidades dramáticas para se explorar. Há também ao mesmo tempo muito e pouco drama, o filme é recheado de incidente e muito simples e isso cobra o seu preço no fim. Por exemplo, a sequência com Richard Madden no final é muito mais vazia do que Mendes acredita.
Há algo perturbadoramente fetichista a respeito da direção de arte de 1917. A qualidade imersiva de todos aqueles pedaços de cadáveres espalhados pelas trincheiras especialmente nas cenas iniciais tem o efeito de transformar os horrores da guerra num covil de Hannibal Lecter. É realista, mas mais que o plano sequência, ela chama atenção para si mesma de uma maneira a reforçar a posição de poder do cineasta dentro da indústria mais do que as perdas de guerra. Assim como naquela sequência de abertura de Spielberg ou no recente Dunkirk, escala se torna significado e a guerra uma função do diretor figurão mais do que uma atrocidade. O problema de se fazer um filme sobre o espetáculo da guerra é que se termina implicado nele. O cineasta se torna mais um general militar preparando uma campanha sem sangue e os sentimentos antimilitaristas são afogados pela escala grandiosa da operação. Como Samuel Fuller, um veterano de guerra de fato, costumava dizer todos os filmes de guerra por mais cuidadosos terminavam como peças de recrutamento. A filmagem grandiosa é por demais divertida, por demais corrompível pela sedução do material.
Parte da cobertura de 1917, escrava como sempre o jornalismo cultural é da ditadura de hoje, tentou passar 1917 como um grande momento dos filmes de primeira guerra mundial, se não o maior. É algo especialmente perturbador quando pensamos as diferenças de perspectiva de filmes sobre a primeira e a segunda guerra mundial. A grande guerra e seu trauma europeu sempre convidou relatos mais assombrados sobre a guerra e suas fatalidades, dos mastodontes humanistas das décadas de 20 e 30 (de Four Sons de Ford ao Nada de Novo no Front de Milestone a Cruz de Madeira de Bernard) para as mais excêntricos pedidos de paz autorais que a proximidade da guerra traz a mente (Não Matarás de Lubitsch, A Grande Ilusão de Renoir, J’Accuse de Gance) para as mais abstratas discussões da guerra como uma máquina de matar fútil como Gloria Feita de Sangue de Kubrick. A ameaça nazista dá significado aos sacrifícios da segunda guerra (não à toa os tratamentos mais absurdos se concentram no front do pacifico), não há tal saída fácil nos relatos do primeiro conflito, a morte ali é apenas o sacrifício estupido do último suspiro canibal do velho imperialismo europeu (se trata afinal de transportar o barbarismo com que as colônias sempre foram tratadas para a metrópole). Nada disso registra em 1917, não consigo me lembrar de outro filme passado na primeira guerra tão desprovido de sentimento anti-guerra. Os horrores da guerra aqui são protocolares, o mínimo necessário para qualifica-lo como um filme sério e não um filme de menino. 1917 apaga as especificidades da “grande guerra” em nome do espetáculo. É um filme de guerra ideal para uma época que tem progressivamente menos uso para pensar seu passado.
Além disso, é assim como Dunkirk um filme secreto sobre o Brexit. Muito como o movimento, a fundação aqui é a nostalgia do maravilhoso passado imperialista da Grã-Bretanha. O grande plano sequência de Mendes se desdobra como um retorno seguro para uma outra era em que os britânicos importavam, quando eles e não americanos estavam na primeira linha do campo de batalha. Assim como Dunkirk, o filme tira muito daqueles rostos de soldados, jovens homens brancos servindo como cordeiros sacrificiais sobre o comando das figuras de autoridade interpretadas por grandes estrelas do cinema britânico (cinema e máquina de guerra de tal forma um só que star power define a patente militar). É uma grande Grã-Bretanha, no centro do conflito mundial, lutando contra os alemães ardilosos e antes de qualquer multiculturalismo (nenhum soldado das colônias a vista). O toque final é a dedicatória ao avô veterano do cineasta e a revelação de que o filme seria “baseado” nos seus causos dando a tudo aquele toque final de aprovação de geração nobre a um passado glorioso a muito perdido no tempo.
Não é que Sam Mendes faça 1917 a partir de intenções especialmente cretinas, se o filme é politicamente questionável tem relação com a sua maneira mais do que seus objetivos. Mendes não é um autor, mas um engenheiro, seu cinema é um de solucionar problemas, uma série de decisões tomadas a partir de questões que ele próprio levantou. Não é surpresa que seus dois melhores filmes são as suas duas contribuições para a série de James Bond (Skyfall e Spectre) porque elas pedem dele que seja um bom administrador com soluções inteligentes. 1917 é um filme burro pois penso muito pouco antes do seu próximo movimento, Mendes quer que a plateia veja seu filme como um análogo da experiência dos soldados se movendo pelo cenário de guerra. Mas ele próprio segue muito próximo do general que os manda para a batalha. Nenhum momento parece gasto pensando nas implicações de se filmar a guerra em geral e esta guerra em particular, sobre o impacto de construir a carnificina como é feita aqui. A maior parte do cinema funciona a partir de pequenas decisões e para ser justo um excesso da crítica se preocupa com as grandes questões quando filmes operam pela negociação de questões menores na base da cena a cena, mas as vezes é preciso pensar por que e como filmar certas coisas e isto nunca ocorre a um engenheiro como Mendes porque os resultados são circunstanciais e os desafios são tudo. Começar e terminar seu filme com planos similares de um soldado exausto não constitui um comentário sobre a guerra. E então 1917 pode terminar como um retrato assustador de guerra completamente fora do controle dos seus realizadores. Se o filme tem algum valor é como um retrato acidental da guerra como show no século XXI, os jovens sendo massacrados por pouco mais do que um grande espetáculo seja do noticiário seja a da tela de cinema.