(English version here)
(Primeira parte aqui)
Segunda parte da filmografia comentada atravessando os anos finais de Nikkatsu e os filmes do período independente.
The Flower and Angry Waves (1964)
Akira Kobayashi lidera uma rebelião de trabalhadores neste filme de Suzuki que aplica alguns dos mesmos princípios de seus filmes de gangster para um tem mais nobre. Nesta toada acho que prefiro North Sea Dragon do Kinji Fukasaku. Não falta o estilo habitual do Suzuki e existe sempre algo interessante na tensão histórica nos filmes de época do diretor.
Portal da Carne/Gate of Flesh (1964)
Portal da Carne é junto de Elegia da Briga, os dois filmes mais ambiciosos que Suzuki fez nos seus anos no estúdio Nikkatsu mesmo que como o próprio confessava sua origem fosse os chefes pedindo um filme de nudez. Retrato da miséria espiritual do Japão derrotado pós segunda guerra a partir de um grupo de prostitutas independentes. É um filme muito perceptivo dos significados de uma ocupação militar. Uma ausência completa de pertencimento, a transformação de cada relação pessoal numa disputa de poder pronta para ser capitalizada. A irmandade aqui tem pouco da solidariedade que encontramos em muitos filmes de gueixa, mas um triunfo final da lógica de capital sobre o mesmo sentimento de união. É um filme panorâmico de um pais em ruínas, filme de cores quentes, corpos observados de forma próxima, sentimentos excessivos. A intromissão de desejo só aumento o masoquismo e a certeza da derrota.
Nosso Sangue Não Perdoa/Our Blood Will Not Forgive (1964)
Como o título anuncia trata-se de um filme muito determinista. Um olhar imperdoável sobre a família japonesa cujas relações de sangue só podem levar a mais desgraça. Dois irmãos crescem sobre a sombra da morte do pai Yakuza, um deles no crime e outro na legalidade. Filme de encenação muito artificial (tem uma cena maravilhosa com o retroprojetor mais falso que me lembro ver) no qual a teatralidade serve de comentário constante sobre a posição dos dois irmãos. Há uma obsessão pela imagem social que os planos de Suzuki revelam o tempo todo como condenados. O chamado da violência é claro inevitável. O tiroteio do clímax é dos melhores da filmografia dele.
História de uma Prostituta/Story of a Prostitute (1965)
O desejo masoquista de Portal da Carne reimaginado num filme que para os padrões do Suzuki é de uma contenção quase digna de Kenji Mizoguchi. É um desses filmes que não casam com imagem que se estabeleceu dele no ocidente. Filme muito violento sobre a condição da mulher no campo de batalha, muito atento para as relações de poder e desejo. Um filme sobre os sentidos da devoção numa sociedade fascista. Retrato da pura devastação.
Born Under Crossed Stars (1965)
Filme curioso justamente pela maneira com que casa elementos dos filmes de juventude sem perspectiva do começo da carreira de Suzuki com algumas das ambições dos filmes dele de meados dos anos 60. O retrato de masculinidade japonesa em especial sugere um rascunho de Elegia da Briga. É um filme bem irregular com alguns momentos muito inventivos.
Tatttoed Life (1965)
Retrato de Japão dos anos 20 que de certa forma complementa o tom destrutivo dos filmes de Suzuki posicionados a partir da II Guerra (é também muito diferente da sua futura trilogia de Taisho). Um filme sobre renascimento espiritual num espaço violento. Bem teatral na sua encenação mesmo antes do clímax no qual Suzuki abandona o drama pela mais pura abstração de tons de luz e movimentos abruptos. É um dos pontos altos do cinema de ação, mas o filme que veem antes também merece atenção.
Carmen from Kawachi (1966)
Quando falamos das parcerias de Suzuki pensamos sempre primeiro nos atores (sobretudo Jo Shishido), mas uma das mais vitais é com a Yumiko Nogawa. História de uma Prostituta, Portal da Carne e Carmen from Kawachi formam uma espécie de trilogia livre de dramas de prostituição que acompanha as transformações do caráter japonês do fascismo ao consumismo desenfreado. É um filme de grande empatia e Nogawa está novamente ótima. O título sugere Bizet, mas o espirito está bem mais próximo de um Sade repaginado para uma sociedade que brutaliza mas se imagina civilizada.
Tóquio Violenta/O Vadio de Tóquio/Tokyo Drifter (1966)
Deve ser o filme do Suzuki com o qual o cinéfilo primeiro costuma tomar contato com ele e muito por isso tende a dominar nosso imaginário sobre ele. Tem uma trama de paranoia e vingança no submundo do crime que é ao mesmo tempo essencial e ilegível. Pura desculpa para uma orgia de cores, movimentos bruscos e cenários delirantes. A música tema é tão grudenta como os melhores temas do Morricone, o que faz sentido num filme que funciona mais como musical do que um filme de ação. Tetsuya Watari protagoniza o filme e ele tem uma personalidade mais recessiva do que Shishido ideal para um filme no qual ele passeia pelos planos enquanto uma série de movimentos formais agressivos age sobre ele.
Elegia da Briga/Fighting Elegy (1966)
Durante seus doze anos de Nikkatsu trabalhou quase o tempo todo na unidade de filmes B (Portal da Carne foi filmado e montado em menos de um mês por exemplo), Elegia da Briga é uma exceção, com uma ambientação nos anos 30 e um desejo de localizar a ascensão do fascismo japonês e um roteiro do grande Kaneto Shindô. É também um dos poucos filmes de Suzuki que ele mesmo iniciou. Filme sobre como a libido mal resolvida da juventude japonesa foi canalizada para um projeto violenta, imperialista e fascista. Um filme ao mesmo tempo engraçadíssimo e terrível. Elegia da Briga permanece muito atual. Um último parêntese o romance era dividido em duas partes com a segunda um drama de guerra que mostrava o protagonista morrendo em combate e a intenção de Suzuki era filma-lo num segundo filme para qual chegou a co-escrever um roteiro, mas teve que ser engavetado após sua demissão da Nikkatsu.
A Marca do Assassino/Branded to Kill (1967)
Um dos grandes pesadelos falocêntricos do cinema. Fragmentado até s limites da abstração numa série de encontros ritualizados em que assassinos tentam ver quem tem a pistola maior. É como se fosse um remake japonês do O Processo de Welles, mas com ainda mais humor negro. Poucos filmes são mais agressivos tanto no comportamento dos seus personagens marginais, mas na forma com que o filme ataca constantemente o espectador. No centro da ação Jo Shishido que faleceu esta semana, com seu rosto marcante e determinado, um ideal de individualismo eficiente que serve como poucos aos desejos satíricos de Suzuki. Alguns anos mais tarde o co-roteirista do filme Atsushi Yamatoya o refiilmaria como um thriller erótico, Trapped in Lust, jogando para primeiro plano todo o subtexto sexual da ação.
Good Evening, Dear Husband: A Duel (1968)
Good Evening, Dear Husband: A Duel foi o último projeto que Suzuki filmou para a Nikkatsu. Um filme de meia hora para uma série de TV de antologia. Um triangulo amoroso apocalíptico que lida com muitas das mesmas ideias sobre desejo e violência dos filmes dele do período reduzida aos elementos básicos dado a um orçamento baixíssimo.
O presidente da Nikkatsu Kyusaku Hori odiou A Marca do Assassino a ponto de considerar engavetar o filme, quando ele foi lançado com boas críticas, Hori (que antes já havia mandado múltiplos avisos de “excesso de experimentação”) demitiu o cineasta por fazer filmes incompreensíveis. Suzuki respondeu com um processo que se arrastou por anos, mandou-lhe para a lista negra e ajudou a afundar as finanças do estúdio. Ele eventualmente ganhou recebeu um pedido de desculpas de Hori e uma parte dos salários perdidos, mas seria quase uma década até que ele filmasse para cinema novamente. Uma parte pouco conhecida da história é que a demissão aconteceu enquanto Suzuki era homenageado com uma retrospectiva num cineclube universitário e a Nikkatsu retirou a autorização de exibição dos filmes. A maior vitória de Suzuki no seu processo foi justamente garantir que a Nikkatsu tivesse que permitir a circulação dos filmes.
A Mummy’s Love (1973)
Descontando alguns comerciais, este filme para TV de 48 minutos foi o único trabalho de Suzuki exibido ao longo dos dez anos em que ele ficou na lista negra dos estúdios japoneses. Filme de terror que ao mesmo tempo sugere os filmes de fantasma da trilogia de Taisho que ele faria na década seguinte e que sugere um crime para justificar a punição sendo muito daquilo que Hori acusara seus últimos filmes da Nikkatsu de ser.
História de Melancolia e Tristeza/A Tale of Sorrow and Madness (1977)
Suzuki voltou ao cinema com essa sátira ao consumismo japonês. Filme ácido cuja superfície mais plácida vai aos poucos sendo substituído pelo apocalipse. O gosto do cineasta por uma certa plasticidade já se revela aqui bem diferente dos filmes para a Nikkatsu, mas a ideia de que a beleza esconde horrores permanece igual. Suzuki é muito consciente das suas novas liberdades como cineasta independente. A crítica explicita a televisão é na verdade uma crítica a todo o imaginário consumista japonês incluindo o cinema.
Fang in the Hole (1979)
Outro media televisivo. Um whodunit sobre como tanto quanto quem. O investigador tem um crânio perfurado e muitas perguntas e o filme vai se fragmentando em torno delas. Tem algo que de sobrenatural no mistério das imagens, mesmo que a ação permaneça pratica. Assim como A Mummy’s Love existe algo de experimentalismo agressivo mais autoconsciente do que o dos filmes da década de 60.
Zigeunerweisen (1980)
Primeiro filme da chamada trilogia de Taisho. Mantém muito das características que associamos a Suzuki, um picturialismo forte, teatralidade das ações, um elemento de mistério que envolve as personagens, mas ainda mais que História de Melancolia e Tristeza soa como uma ruptura radical com os filmes de gênero que o deixou famoso. É um pouco como se alguém cruzasse o mistério sobre natural de Um Toque de Zen do King Hu com uma das comédias de intelectual beberrão e dado ao ridículo do Hong Sang-soo. O retrato de um Japão que é ao mesmo tempo próximo e muito distante daquele começo de década de 80 é bem forte.
Kagero-za (1981)
Zigeunerweisen marcou o verdadeiro retorno de Seijun Suzuki vencendo os principais prêmios do cinema local e rapidamente ele realizou essa sequência temática novamente passada na era Taisho e envolvendo homens intelectuais patéticos metendo os pés pelas mãos em meio a um clima onírico. Os elementos sobrenaturais são mais pronunciados assim como um retrato de Japão assombrado e em transformação. É um conto de perdição sobre libido masculino e é interessante observar que ele está tematicamente próximo de muitos dos últimos policiais da Nikkatsu, mas a mudança no perfil dos personagens principais faz com que seus sentidos mudem bastante.
Cherry Blossoms in Spring (1983)
Belas imagens de um tableaux teatral envoltas num perigo constante. Um filme feito nos primórdios do direto para video sobrea sedução das superfícies. O baixo orçamento significa que é tudo um pouco menos alucinatório que nos dois filmes anteriores, mas o princípio que os anima é o mesmo. O artificio como uma forma de perdição, a paixão do imaginário japonês por uma ideia de cerimonial. Um encenar do chamado da morte.
The Choice of Family (1983)
Outro filme para TV que Suzuki fez em 1983 e infelizmente não bem sucedido. A sátira mordaz a família japonesa e a sociedade do período é bem típica dos seus filmes, mas as imagens televisivas aqui são rasas demais para permitir aos personagens um senso de mistério e falta a criatividade que nos acostumamos a encontrar nos filmes dele.
Capone Cries a Lot (1985)
Se os anos do pós Guerra foram assombrados pela presença americana em solo local e o impacto dessa colonização dos vitoriosos sobre a sociedade local, os anos 80 são justamente o da chegada do Japão moderno como força dominante no capital ocidental. Capone Cries a Lot, um dos melhores filmes de Suzuki que raramente é mencionado, é um filme sobre este encontro que vai ao passado para falar do presente. Uma comédia maluca sobre relações Japão/EUA e o apelo da cultura americana. É contemporâneo aos filmes de Taisho, mas suas imagens apostam na presença agressiva de iconografia americana a começar pela presença de um Al Capone histriônico. Apesar de seus filmes policiais fazerem com que muitos pensem em Suzuki como um cineasta ocidentalizado, o grande crítico japonês Shigehiko Hasumi certa vez o descreveu como “um homem muito japonês que considera os ocidentais bárbaros”. Uma comedia anti-imperialista que mostra Suzuki no seu mais agressivo e criativo: das atuações exageradas ao uso expressivo de cenários simples aos úmeros musicais inesperados e uma montagem muito inteligente e nada previsível. Um filme demolidor sobre um mundo fora de lugar, um mito de origem do Japão moderno.
Lupin III e a Lenda do Ouro da Babilônia/Lupin the III: The Legend of the Gold of Babylon (1985) (co-dirigido por Shigetsugu Yoshida)
Unica experiência de Suzuki com longa de animação é este episódio da popular série do Lupin III (o primeiro desde O Castelo de Cagliostro do Miyazaki). Curiosamente, Suzuki substituiu ao Mamoru Oshii depois que a Toho considerou as ideias dele radicais demais o que torna A Lenda do Ouro da Babilônia a única vez em que Suzuki foi visto como a opção careta. Ele havia nos anos 70 trabalhado como supervisor de direção na serie de TV do personagem. Animação e Suzuki combinam muito bem com a imaginação dele bem liberada. É um filme de ação no qual a animação serve para eliminar qualquer preocupação com a gravidade, corpos animados em movimento flutuando pelo quadro. Cada um dos grandes blocos de ação encontra sempre novas saídas para se estender um pouco mais.
Yumeji (1991)
Esta biografia do pintor e poeta Yumeji Takehisa feita dez anos depois de Zigeunerweisen e Kagero-za serve para fechar uma trilogia livre sobre o período histórico que seguem muito dos meus preceitos formais e observações sobre a transformação do Japão no começo do século XX. Apesar da vida de Yumeji servir de ponto de partida a qualidade fantasmagórica é ainda mais pronunciada aqui com cada ação ganhando um peso simbólico maior. Inclui algumas das imagens mais marcantes do cinema de Suzuki.
Kekkun (1993)
Um filme em três episódios no qual Suzuki contribui um olhar satírico de 40 minutes sobre cerimonia de casamentos. Parece que Suzuki se divertindo carnavalizando um filme do Juzo Itami. Boas atuações para ancora-lo nada de essencial, mas o prazer dele é visível.
Pistol Opera (2001)
Suzuki revisita A Marca do Assassino pelo viés dos seus filmes tardios. Um filme que traspassa toda a filmografia dele com imensa liberdade. Como o título anuncia é uma grande opera de tiros e cores. O protagonista é reimaginado como uma mulher envolvida nas mesmas disputas do filme anterior (o personagem central de A Marca do Assassino também retorna reforçando o tom autorreferente). É um dos maiores experimentos de Suzuki com cor e movimento, um musical sangrento com muito humor sobre a competitividade japonesa.
Princesa Guaxinim/Princess Raccoon (2005)
Assim como Pistol Opera, Princesa Guaxinim é uma opereta. A tendência a teatralidade na encenação de Suzuki finalmente abandona qualquer subterfugio. Cada imagem muito elaborada e assumidamente artificial. A montagem reforça a coreografia dos movimentos e a relação dos atores com os cenários teatrais. A lenda do título reforça o caráter essencial do material. É um Suzuki mais exposto e menos cool do que o de Pistol Opera, mas os dois filmes se articulam muito bem como palavra final sobre o cinema e suas possibilidades.