(English version here)
Do indistinto pelo distintíssimo, chega-se ao terceiro e inevitável arco: as civilizações. Com ela, voltam as fusões, a possibilidade de se produzir novos sentidos e leituras. O caos mediado pelo artista se torna novamente História. Em dado momento de Filme Socialismo, ouve-se em voz over que Hollywood era chamada de Mecca do cinema por conseguir que um grande número de pessoas se voltasse, em um mesmo momento, todos para um mesmo lugar: a tela. O filme, porém, é o olhar de um indivíduo. O cinema – ou a arte – permanece como a possibilidade de resistência última do sujeito, mesmo que este sujeito nos chegue aos cacos, aos estilhaços de quem imprime um mundo a voar diante dos olhos (ou, como um filme-pensamento, dentro da cabeça) – Fabio Andrade sobre Filme Socialismo
A mesa das atrizes, para além de toda construção temática, é ela própria uma forma de dizer que o cinema é um monumento histórico tão grande quanto as ruínas de Pompéia ou o Partenon, Nápoles ou Constantinopla. Várias camadas de História se fazem presentes num filme de Oliveira, e a passagem entre elas é que compõe toda a beleza que jamais nos deixa de maravilhar, como nos maravilha a história e o humano em geral. – Ruy Gardnier sobre Um Filme Falado
Jean-Luc Godard filmou o seu Filme Socialismo em 2008 no cruzeiro Costa Concordia no Mar Mediterrâneo. As filmagens foram documentadas pelo seu sobrinho Paul Grivas cujo trabalho principal é de fotografo. Em janeiro de 2012, o Costa Concordia colidiu com um rochedo e aquele símbolo de luxo explorado pelo cineasta suíço afundou. Dez anos depois, Grivas finalizou este Film Catastrophe um ostensivo making-off cujas imagens são diretamente informadas pela subsequente naufrágio de navio.
O foco exclusivo em Godard me parece tão errôneo quanto a discussão obsessiva na mídia mainstream à época sobre as legendas e ausências delas em Filme Socialismo. Este não é um filme sobre Godard, o artista, tanto como uma reapropriação da sua filmagem e alguns dos interesses do filme original. A resenha de Richard Brody no New Yorker previsivelmente somente vê oportunidades de explorar os métodos de Godard, um movimento egoísta (Brody afinal é um dos biógrafos de Godard) que majoritariamente exclui os próprios méritos de Film Catastrophe. E maior parte das discussões que encontrei online seguem a mesma toada.
Trata-se de um making-off, mas ao contrário da maioria dos documentários sobre um filme de autor, o foco aqui é no trabalho e não no artista. Vemos Godard a filmar com sua equipe mínima, vemos o esforço envolvido em realizar tal filme, como as filmagens de Filme Socialismo existem dentro do ambiente mais amplo do Costa Concordia e seus passageiros. Mesmo quando o filme para e registra um momento mais promocional como a participação de Patti Smith, ele o faz de forma a esvazia-la de tais intenções. Então o making-off aqui não tem quer vender o filme original e também demonstro nenhum interesse de reproduzir a economia do circuito de festivais contemporâneo e vender o gênio de Godard. Film Catastrophe não está interessado em Godard como alguma figura brilhante chegando a um filme, mas como alguém tentando controlar uma série de fatores externos para realizar um longa metragem (ênfase na negociação num lugar de uma “direção” mistificadora).
O cruizeiro sempre foi um espaço simbólico no próprio filme de Godard e o olhar de Grivas dobra essa aposta. Film Catastrophe não existiria se o cruzeiro não naufragasse, então suas imagens são assombradas pela noção de desaparecimento. O efeito mais godardiano do filme é como ele é sobre o colapso de imagens sobre elas mesmas e o significado que esta sobreposição tem para a história (ao menos a história europeia). Seu material ganha sentido pois agora Godard trabalhou sobre destroços. O que já era um espaço fantasma de uma sociedade europeia se tornou agora imaterial por completo.
Por conta disso, eu pensei muito num outro filme sobre um cruzeiro num navio que naufraga, Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira, que oferecia uma discussão aristocrática sobre o desaparecimento da Europa com a materialidade da história servindo como uma ancora. O filme de Oliveira saiu cinco anos antes de Godard começar a filmar Filme Socialismo e podemos dizer que ambos os filmes estavam em diálogo. Grivas oferece uma nova leitura desta conversa porque o naufrágio empurra os gestos simbólicos do material ainda mais próximo do diagnóstico de Oliveira (Um Filme Falado é bom lembrar termina com seu navio simbólico explodindo).
Como Oliveira, Grivas propõe uma arqueologia de uma Europa neoliberal naufragando frente a uma história que desaparece. Film Catastrophe e Um Filme Falado são sobretudo filmes que usam o passado para ancorar o agora. Suas preocupações pertencem ao tempo presente mesmo que se refiram a eventos de anos atrás. Boa parte do filme de Oliveira apresenta lições historicas (Leonor Silvera é uma professora) usando a uma série de visitas históricas como pontos de referência. A pedagogia se torna Godard realizando seu filme e a materialidade se move de locais e monumentos históricos para os traços da filmagem original capturados anos atrás. Um ato de recuperar imagens de um espaço condenado. O navio em todos os três filmes é um lembrete de uma Europa contemporânea pronta a desaparecer, mas somente no filme de Grivas este desaparecimento se torna concreto.
É valido apontar que o olhar tanto em Um Filme Falado como em Filme Socialismo é bastante aristocrático (bem consciente no caso de Oliveira, nem tanto no de Godard) e Film Catastrophe me parece distante de ambos com seu desejo de combinar a superfície simbólica das imagens com a impressão do trabalho real envolvido em produzi-las. Aqueles eram cada um à sua maneira navios de tolos, o de Film Catastrophe produziu Filme Socialismo. Uma coisa é certa, o decadentismo é ainda maior agora. Nos movemos do socialismo a catástrofe. O desaparecimento do conhecimento do mundo da primeira parte do século XX de Oliveira e o desejo de registrar/intervir no desperdício no de meados para a segunda metade do século de Godard não são vistos mais. De Civilização para seu questionamento para seus destroços. O que sobra são os traços finais da imaterialidade de uma velha ordem. Uma espiada num mundo em desaparecimento. Estas imagens foram organizadas após o naufrágio, o espaço fantasma é um espaço morto. Do artista do século XXI, o que podemos esperar é buscar sentido nos destroços para que uma nova luta possa começar.
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