Lançado no final do ano passado pela Editora do Sesc, Nova História do Cinema Brasileiro (org. Fernão Ramos e Sheila Schvarzman) é um trabalho bastante ambicioso. 25 artigos e cerca de 1100 páginas vindo de um grupo amplo de pesquisadores de cinema brasileiro dividido em dois volumes. Menos uma revisão como o nome pode sugerir e mais um esforço de atualizar alguns dos princípios da historiografia do cinema brasileiro a partir de correntes mais contemporâneas. Há aqui uma bem-vinda ênfase no mercado exibidor, uma redução num autorismo que se foca exclusivamente no conteúdo dos filmes, um destaque maior ao filme documental e também a esferas do cinema popular geralmente negligenciadas em estudos do tipo (artigo sobre a boca do lixo e o beco da fome e outro sobre as comedias contemporâneas, além de maior ênfase na produção mais comercial da Embrafilme). O fantasma dos questionamentos do Jean-Claude Bernardet sobre as limitações da historiografia clássica do cinema brasileiro paira sobre o livro e um desejo de oferecer uma resposta prática.
O enfoque na exibição é especialmente bem-vindo considerando as dificuldades do cinema brasileiro de pensar a difusão. Um dos melhores artigos do livro é justamente o de Carlos Roberto de Souza e Rafael de Luna Freire que lida com a chegada do cinema sonoro ao Brasil e que trata tanto da lenta transição ao longo dos anos 30 do nosso parque exibidor quanto das primeiras experiências sonoras realizadas por aqui. É um artigo que soma muito as quase 300 páginas que detalham o cinema silencioso brasileiro que abrem o volume e que outras histórias poderiam negligenciar.
Se há um eixo que sustenta o livro é justamente a relação entre realizadores/governo/exibidores. Neste sentido Nova História do Cinema Brasileiro é uma obra política fundamental fazendo um esforço grande de traçar um panorama histórico das politicas governamentais para com a indústria cinematográfica começando com o papel dos governos locais e brasileiro como clientes a encomendar filmes documentais até a Ancine. Por exemplo, os artigos que lidam com a produção das décadas de 40 e 50 fazem um ótimo cronograma das primeiras tentativas do governo de estabelecer uma obrigatoriedade da exibição do filme brasileiro. Da mesma maneira, Tunico Amancio realiza um bom trabalho sobre a Embrafilme. Se há uma fragilidade estrutural no livro ela me parece justamente uma dificuldade para fazer o movimento entre as políticas de estado e ideologia. Salvo pelos artigos de Natalia Christofoletti Barrenha e Sheila Schvarzman que lidam com o INCE e uma menção no texto de Fernão Ramos sobre o fim da Embrafilme sobre o neoliberalismo de Fernando Collor de Melo, os artigos tem dificuldade articular como os governos se articulam ideologicamente diante do audiovisual. O mesmo artigo do Fernão Ramos, por exemplo, menciona a ironia de Celso Furtado, um economista de esquerda, ter dado os primeiros passos para o desmonte da Embrafilme, mas não pensa nos efeitos da passagem dos militares ao Sarney sobre a empresa (assim como quando se discute a produção contemporânea se aponta uma mudança após a passagem de Fernando Henrique Cardoso a Lula, se de fato se aprofundarem sobre o que a mudança significava. A despeito disso, os dois volumes são certamente o trabalho de mais folego sobre as políticas de estado quanto ao cinema brasileiro.
Há também uma tendência a isolar o cinema brasileiro que as vezes cobra seu preço. Salvo por algumas referências as diferenças entre as realidades de mercado da indústria brasileira quando comparada as da Argentina e México no capítulo sobre a Vera Cruz, o cinema brasileiro existe quase por si só ao longo do livro, o filme estrangeiro aparecendo somente pelo viés do embate. Os dois textos que lidam com a indústria popular e sua crise nos anos 80, nunca buscam pensar ela no contexto de crises similares pelo mundo, fala-se da pornografia, mas não do mercado do mercado de home vídeo, etc. Falando em senões não passo deixar de apontar um certo incomodo dos anos 60 serem cobertos em dois artigos de folego (cerca de 180 páginas entre eles) do organizador Fernão Ramos na contramão da pluralidade do resto do livro. Há passagens ótimas como as sobre Paulo Emilio que liga os dois textos, mas há uma mudança notável para um trabalho mais detalhado de análise crítica (a passagem sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol tem dois terços do tamanho do artigo sobre cinema experimental da Guiomar Ramos e Lucas Murari), o que dá para o período um certo olhar privilegiado e faz esta parte um bom livro dentro dos livros. Com todos os ótimos esforços de expandir um olhar sobre o cinema brasileiro é notável o número de realizadores relevantes que pouco ou nada são mencionados (Carlos Hugo Christensen, Domingos de Oliveira, Braz Chadiak, Alberto Salvá) porque não cabem bem nos recortes escolhidos, o que me indica que ainda a espaço para melhorar nesse sentido. E não posso esquecer de dizer que apesar de compreensível dada a extensão dos dois volumes, como pesquisador a ausência de um índice remissivo deu dor de cabeça para escrever este post de blog, imagina consulta para um trabalho de mais folego.
Estes senões são menores diante dos acertos da obra. A seção sobre cinema silencioso, os capítulos sobre cinema independente dos anos 40/50 (e da chanchada), o foco na Boca do Lixo/Beco da Fome/Embrafilme, o excelente artigo sobre a produção de comedias contemporânea, entre outros.