É uma coincidência fascinante que Baixo Centro venceu a Mostra Aurora na última edição do Festival de Tiradentes, um ano depois do evento comemorar com fanfarra os dez anos da seção. Coincidência porque parte da força do filme é o de sinalizar um certo estado das coisas e este vai justamente na direção aposta da comemoração protocolar. Se estes agora 11 anos da Aurora significam algo e me parecem significar bastante para quem tem interesse num olhar que busque algum frescor e risco, é igualmente significativo que um ano após a comemoração venha este filme de ressaca.
O esgarçamento que Baixo Centro registra com seus personagens zumbis em deslocamento pela noite mineira neste seu misto de encantamento e melancolia, é político, mas é também estético. É um filme de final de feira que parece capturar um sentimento de “E agora?”. Este cinema brasileiro de baixíssimo orçamento que se convencional chamar de novíssimo (um filho sem pai ao qual todo mundo pertence e parecer querer fugir), está ali atônito, na encruzilhada. Os corpos que Baixo Centro acompanham parecem exaustos, mas as suas imagens também. O filme tem aquele sentimento forte de lugar acompanhado de uma fragilidade de drama idem. Há um esvaziamento ali no trabalho do Ewerton Belico e do Samuel Marotta, o filme reproduz com precisão alguns procedimentos que esta última década consagrou, faz isso com habilidade, mas o que ele acrescenta mesmo é esta perplexidade. Não tem mais para onde fugir. Sonhou-se alto, mas o combate diário do cinema brasileiro é mais duro e frustrante.
O que Baixo Centro aponta é o limite desta imagem. Um limite que tem relação com um sentimento político (é certamente um filme de ressaca do pós-Impeachment), mas também um sentimento de deslocamento do tempo. Baixo Centro se move na direção da incerteza inclusive sobre a própria viabilidade. Teremos muitos outros Baixo Centros lá por 2021? Ou as condições dele vão desaparecer, seja econômica, seja esteticamente. Muito disso é de certo uma projeção minha a partir das dúvidas que o filme encara de frente. Agora, o trabalho do Belico e Marotta tem uma riqueza que permite pensar nessas coisas.
Falei do limite da imagem e o limite do quadro me parece essencial. Baixo Centro acontece no espaço em que a sua imagem delimita, o que está ali além dela parece sempre um problema, um risco, uma questão. Não à toa o filme termina justamente lidando com esta barreira promovendo a violência que existe nesta preocupação extracampo. Cria-se uma indefinição entre este campo e extracampo, ao mesmo tempo que se reforça o caráter negativo da dramaturgia que buscou construir. Estamos em cheque, fim de uma era.
Existem similaridades fortes com Era Uma Vez Brasília. No filme do Adirley Queirós também todos: filme, personagens, realizadores e espectadores parecem atônitos. Ali também se diagnóstica sintomas, Há muito mais vigor nas imagens do Adirley. Quando ficamos naquela viagem espacial interminável, há uma selvageria no uso do tempo que as sequencias circulares entre os personagens de Baixo Centro não dão conta. A derrota é um dado, mas Era uma Vez Brasília é um filme sobre como lidar com a derrota, como buscar suas potências, enquanto Baixo Centro é um filme derrotado. Nisto lembra alguns filmes menores do Cinema Marginal, quando a porrada existia no limite do fetiche com o imobilismo. É tanta perplexidade que nunca chega-se a resistência.
Uma questão recorrente nos filmes ligados ao novíssimo, tirando os do Adirley, é justamente como articular de forma prepositiva o enfrentamento político. Em Baixo Centro, terminamos no arrefecimento dos ânimos. Aqui existem os desejos dos personagens, um movimento de corrida e este fora do campo temeroso e o vazio.
Há no filme do Belico e Marotta este terreno pantanoso. Os sentidos da batalha são dados, mas o filme é mais forte no captar um estado de espírito, do que em reagir a ele. Politicamente ele existe ali a beira do abismo. Cabe ver se nós todos que somos desejosos por um cinema brasileiro de invenção, conseguimos dar juntos um passo para além dele.
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