Assisti nessa semana dois filmes brasileiros que, a despeito das suas fragilidades, me pareceram experimentos muito interessantes e que dialogavam muito bem apesar de serem de resto em tudo diferentes. Um deles é o A Luz do Tom, segundo documentário que o Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim co-dirigiram. O outro é Diário da Greve, autointitulado filme de garagem, que Guilherme Sarmiento realizou registrando o seu dia a dia durante a paralisação dos professores das universidades federais em 2015. Eles não têm muito em comum a parte serem filmes quase caseiros, (A Luz do Tom com muito mais grana evidentemente) e serem filmes assombrados pelo que seria uma representação do Brasil hoje.
A Luz do Tom consiste em três longas entrevistas com mulheres da vida de Tom Jobim: a irmã Helena e as duas esposas Thereza e Ana. As entrevistas são sempre tomadas em ambientes de natureza, jardim ou parques, uma opção justificada pela relação que o documentário traça entre a obra de Tom e a Mata Atlântica. O filme é conscientemente um reverso do A Música Segundo Tom Jobim. No filme anterior existia pura música que falava por si só, em um cuidadoso trabalho de pesquisa e organização. Aqui o foco é homem tal como visto por pessoas com quem mantinha uma relação de afeto. Como perfil é competente, seguro e oficialesco. Apesar de agradável, eu jamais escreveria sobre ele aqui pensando-o como um filme sobre Tom Jobim. Agora como um filme através de Tom Jobim, ele se torna uma experiência assombrosa.
Pois o que fica em jogo ali é muito menos o Jobim homem, do que o Jobim símbolo, mais especificamente o que ele representa para o imaginário de um outro Brasil. Apesar do filme ser narrado a partir de hoje -três mulheres retomando a memória de um homem que elas amaram -, o filme nega radicalmente que este hoje exista. Salvo por uma cena bem típica do cinema do Nelson Pereira dos Santos na qual ele encena um grupo de estudantes indagando Helena sobre os hábitos românticos do jovem Tom, não haverá no filme outras personagens, não haverá construções urbanísticas, ou qualquer tentativa de estabelecer um mundo contemporâneo. Haverá somente a natureza e aquelas mulheres que nos guiam em seus desejos e a música de Jobim para pontua-los. O Brasil do começo da década foi conscientemente apagado. É uma pastoral da Mata Atlântica, que expõe um desejo claro de retomar um Brasil dourado e mítico. Se a nostalgia é um dado que distancia o filme do mofo saudosista como, por exemplo, de um Ruy Castro ou algum outro colunista medíocre de O Globo, é que como um todo parece ter plena consciência do que há de potencialmente reacionário e destrutivo neste desejo de voltar o relógio. Acaba por ser também um filme sobre um fora de campo que nunca aparece, bem consciente do mal-estar que se instala nessa celebração..
Já Diário Da Greve não é só um diário do cotidiano do diretor Guilherme Sarmiento quando da paralisação da greve, mas, de forma bem consciente, é um filme sobre o cinema brasileiro contemporâneo, sobretudo na sua vertente autoral de baixíssimo orçamento. O cineasta começa o filme lançando mão do termo “cinema de garagem” retirado do livro que Marcelo Ikeda e Dellani Lima lançaram em 2011, primeira tentativa de fazer uma crônica do jovem cinema brasileiro dos anos Lula. Logo no começo há uma epigrafe de Ikeda, mais a frente outra de Lima e conceitos chaves do livro como “afeto” são retomados e explorados como blocos de ação.
Ai já há um primeiro paradoxo: é um filme em primeira pessoa, personalíssimo, sobre o que ocorre à frente do cineasta, mas essa auto ficção não deixa de ser relação intencionalmente tensa com todo o receituário do que seria este “cinema de garagem”. Parte do que fascina aqui é esta disposição de se apresentar como o cinema brasileiro a filmar a si mesmo. Sarmiento é uma figura das mais curiosas, além de cineasta e professor, é jornalista e crítico, com um pé no cinema e outro na literatura, alguém com prazer por uma certa construção jocosa, onde a crônica de observação é entrecortada por uma boa dose de ironia. Elementos que certamente são bem aparentes no filme.
Na outra ponta do seu filme está a greve do título. O cinema brasileiro dos últimos 15 anos pouco representou a ideia da greve (a grande exceção sendo Dias de Greve do Adirley Queirós, que eu pessoalmente considero o seu melhor filme). Nesse aspecto é corpo diferente dentro do nosso cinema. O próprio filme, porém, já anuncia na sinopse o seu fracasso, é sobre um professor que resolve filmar seu cotidiano de grevista e termina obcecado pelo próprio filme. O cinema engole a greve. O lado Ikeda acaba vindo antes da discussão do cotidiano de um grevista. Boa parte da frustração autoconsciente de Diário da Greve vem dai. O filme é meio sintoma, meio diagnóstico. É um fracasso que sabe sê-lo. Este ato de sair do filme e ir até o protesto permanece interrompido. O próprio Sarmiento se indaga se está fazendo sua parte como grevista. A crônica da greve e a crônica do umbigo se misturam. A greve fracassa como a greve dos professores segue fracassando continuamente nesta última dúzia de anos, o filme fracassa em dar corpo a ela.
É um filme grosseiro, intencionalmente duro.As tentativas de construir ficção nunca se desenvolvem, pode-se dizer que de propósito, pode-se também apontar que falta tarimba. Provavelmente é um pouco das duas coisas. Um mundo ficcional permanece ali tênue quase ao nosso alcance. Assim como A Luz do Tom é um filme de negação. A crise de orçamento da educação que se arrasta há anos, a greve está ali, e segue mais anunciada do que representada. Diário da Greve grita que este cinema é incapaz de chegar as questões, é incapaz de lidar com o mundo. As imagens do Sarmiento acabam também sugerindo uma não imagem. É um filme através dessa ideia de cinema de garagem que Ikeda e Lima cunharam, um gozo interrompido. O cinema brasileiro filma a si mesmo para reconhecer que não consegue dar conta da própria crise. Se é um filme errado, me parece um filme muito mais interessante que os nossos filmes certos. Acho bem significativo que ele comece a circular no mesmo ano que o Festival de Tiradentes comemorou os dez anos da sessão Aurora no qual muitos dos filmes deste ciclo estrearam.
Para mim foi muito enriquecedor ver essas duas não imagens, uma de celebração e outra de fracasso, estas duas negações da representação. Cada um à sua maneira são filmes insulares, mas o fora de campo deles é poderoso. São retratos de uma impossibilidade e os seus nós na garganta me dizem muito.