Me peguei relembrando este filme do Todd Haynes e a reboque me veio que este texto está faz tempo fora da web. Foi publicado originalmente em Maio de 2008 no site da Paisà. Em retrospecto passo um tanto de tempo de mais falando da recepção crítica do filme, mas acho que tem algumas coisas no texto que acrescentam algo sobre o filme.
A música carregava uma aura de familiaridade, de tradições orais, e um profundo sentimento de auto-reconhecimento, de reconhecimento do ser – do cantor? do ouvinte? – que era tanto histórico como sui generis. A música era engraçada e reconfortante, ao mesmo tempo estranha e algo incompleta. Saída de algum desarranjo entre arte e tempo, a música parecia ao mesmo tempo transparente e inexplicável. (…) Ouvidas como algo completo – como uma história, apesar ou por causa da sua coleção de peças faltando, gravações incompletas, cronologias confusas de composições e performances – as basement tapes começam a soar como um mapa; mas se elas são um mapa, que pais, que mina perdida, esta em seu centro? Elas começam a soar como um experimento natural ou um laboratório: um laboratório onde, por alguns meses, certas fundações da linguagem cultural americana foram recuperadas e reinventadas. – Greil Marcus, Invisible Republic
O consenso critico falou: I’m Not There é o melhor filme de Todd Haynes, uma obra-prima, somos todos convocados a escolher nosso Dylan favorito (quase invariavelmente Cate Blanchett). No julgamento rápido do universo crítico contemporâneo, I’m Not There não é um filme, mas objeto para rápida decodificação e mais rápido consumo: Christian Bale é o Freewheelin’ Bob Dylan – e também o Dylan cristão, algum fanático completa -; Cate Blanchett é o Dylan elétrico a fumar maconha com os Beatles num pastiche felliniano/godardiano sem fim; Heath Ledger é o Dylan divorciado/despedaçado, do porre anos 70 de Blood on the Tracks, o resto é um tanto esquisito mas se reconhece um jovem proto-Bob Dylan aqui, uma citação a Peckinpah ali. Os jornalistas sacam suas cópias de No Direction Home, de Scorsese, e tratam de se inteirar de todas as releituras da vida de Dylan que Haynes oferece. Nesse grande evento crítico, I’m Not There é o filme que acabou calado, seu percurso completado antes de começar, o que articula nas suas imagens é desarticulado pela desleitura crítica. É impressionante: elogia-se Haynes por criar uma biografia original, e segue-se na frase seguinte a normalizá-la.
Cabe a pergunta: se I’m Not There é um grande filme – e eu acredito que seja – que grande filme seria? Não uma obra-prima perfeita, para começo de conversa. A despeito de toda a sua imaginação, o filme não é imune a uma certa aspereza formal de seu cineasta, especialmente nas seqüências do falso documentário sobre Jack Rollins (Bale), uma grande sacada conceitual, mas que para além de anular seu intérprete mais expressivo junto com seu personagem emoldurado na pretensa não ficção – Bale só nasce para o filme quando Jack reencarna como pastor – é um grande desarranjo engasgado a nos lembrar de uma certa grosseria na forma como Haynes apresenta seus conceitos. Menciono o falso documentário justamente porque é um típico conceito do cineasta e Haynes é sobretudo isso, um cineasta de grandes idéias, e o jogral de avatares-Dylan do filme é o grande conceito de Haynes, aquele momento eureka que cineastas que vivem de idéias adorariam encontrar. Não surpreende que não se precise experienciar I’m Not There para discursar sobre ele, seu conceito é tão atrativo, ao mesmo tempo uma jogada fácil de assimilar e que joga o filme numa estratosfera muito diferente da habitual, que seu estatuto de filme-evento já nasceu assegurado. Mas permanece um impasse: como flutuar por todos este avatares-Dylan que o conceito de Haynes nos oferece? Haynes é por temperamento um dos nossos mais cerebrais cineastas, mas se engana quem ignora a importância de intuição para o trabalho dele, sobretudo neste I’m Not There, que é um filme de vocação exploratória. Muito do que Haynes faz é certamente planejado, mas os choques de idéias que o filme causa nos levam para bem longe da racionalidade excessiva que à primeira vista seu estatuto de filme-conceito/evento sugerem.
Mesmo assim, a resposta mais comum parece mesmo a de pegar o mural de Haynes e transcrevê-lo dentro da obra de Dylan. Logo, não surpreende o refrão “você tem que conhecer Dylan para compreender o filme” que foi usado à exaustão. Mas precisamos mesmo? Sim, é verdade que os iniciados aproveitaram muito mais pequenos detalhes que Haynes usa como pano de fundo, mas o excesso de informação sobre Dylan também detrata da experiência do filme, já que Dylan é ao mesmo tempo o elemento mais importante e o menos de tudo que Haynes está construindo. Pessoalmente, as seqüências que menos me envolvem são justamente as com Jude Quinn (Blanchett), porque nelas Todd Haynes está lidando com o momento mais excessivamente documentado da carreira de Dylan e o excesso de informação que possuo termina sendo um muro diante do que transcorre na tela. Talvez o grande achado destas cenas dentro da paisagem geral do filme seja justamente o de serem o único momento em que ele nos permita uma conexão com “Dylan” sem uma mediação direta, já que mesmo as mais naturalistas seqüências com Robbie Clark (Ledger) tem que lidar com ele ser um Dylan codificado. Mais ainda do que a atuação de Blanchett, é esta imersão direta num Dylan que todos conhecemos que atrai nestas seqüências, cujas imagens surgem por vezes como reconstrução do Don’t Look Back de Pennebaker (e por extensão o documentário de Scorsese) ou como pastiche do filme de arte europeu dos anos 60.
I’m Not There é sobretudo um filme sobre a república invisível de nosso imaginário coletivo onde a obra de Dylan se impregnou (o que torna sua recepção crítica previsível, mas tão interessante). Haynes deu sorte de contar com todo catálogo de Bob Dylan a disposição. Como já notado, muito do impacto emocional do filme, para além do seu conceito, brota das canções que lança mão. Menos observado é que Haynes faça uso tão livre de covers de Dylan quanto dos originais, como a nos lembrar que a obra em questão é muito maior que seu autor. Os créditos do filme dizem que ele é baseado “nas vidas e obra de Bob Dylan”, mas é na segunda que o filme encontra sua razão de ser e é ela que trazemos conosco. Dylan o artista é antes de mais nada uma ponte, uma brecha que permite a I’m Not There mergulhar, o filme me parece muito mais preocupado com outras questões: os anos 60 e o nosso olhar sobre eles, as múltiplas articulações entre arte e política, a capacidade da cultura em geral (e a americana em especial) de se articular com, mas sobreviver a, seu tempo, o que estas canções diziam a época e como isto se articula com nosso consumo delas hoje. Não surpreende que num filme de lógica tão centrífuga seus momentos mais inventivos estejam justamente à margem.
Porque I’m Not There vai de fascinante biografia-conceito para genuína obra-prima quando se move do centro da releitura da vida do músico para as margens do mito Dylan representados pelas figuras de Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin), um trovador negro adolescente cortando os EUA, e Billy (Richard Gere), um criminoso do velho oeste americano. Aqui encontramos a obra de risco, de invenção, o filme que segue rumo ao inesperado. Haynes no seu melhor momento intuitivo, bem distante do mestre de semiótica que por vezes domina seu filme, mas lançando mão de todo o arcabouço intelectual que lhe pertence para tatear todo um ideário cultural americano e como ele foi redisponibilizado à Haynes por Dylan em determinado momento dos anos 60. Pouco a ver com o primeiro Dylan a imitar seus mestres ou com a mera homenagem a Peckinpah que os decodificadores mais apressados logo encontraram. Aqui o cineasta abre um dialogo rico de mão dupla com o trabalho que o crítico inglês Greil Marcus desenvolveu a partir da obra de Dylan, em especial no seu livro Invisible Republic que extrapola uma série de considerações sócio-especulativas a partir do conteúdo das gravações que Dylan realizou com The Band, que ficaram conhecidas como The Basement Tapes (e cujo conteúdo é ouvido de forma generosa ao longo do filme, a começar por sua obscura canção título).
Quando Billy faz sua longa cavalgada até a cidade de Riddle ou Woody tem suas aventuras pelo interior dos EUA, Todd Haynes alcança algo que ele vem buscando desde que transformou Karen Carpenter em uma boneca barbie em Superstar : como uma ponte cultural ganha corpo. Ali está toda uma tradição americana, sobretudo oral, que cavalga junto a Billy ou o violão de Woody, e Haynes, ao basicamente se mostrar receptivo à textura desses momentos, à maneira como a luz reflete sobre os atores ou como Richard Gere comanda seu cavalo, retira desses momentos do seu deslocamento histórico e os devolve ao nosso imaginário. A estranha velha América do mito cultural, o músico popular dos anos 60 e o cinema contemporâneo renascem como o mesmo movimento de trem. Toda uma experiência de contemplação cultural ressurge escrita na imagem e de uma cavalgada retiramos uma passagem muito mais ampla e rica do que os decodificadores da grande imprensa sugerem; pois I’m Not There tem de sobra aquilo que falta à maior parte dos seus interlocutores, a disposição de parar, respirar e observar as conexões que simplesmente se formam diante de nosso rico imaginário cultural.