
Avanti (1972)
Com a retrospectiva do Billy Wilder acontecendo no Cinesesc me parece útil repostar aqui este texto escrito para o site da Paisà em 2007 me aproveitando do lançamento de uma série de filmes dele em DVD à época. O tom é um tanto mais ácido do que eu escreveria hoje, mas assino embaixo de tudo com a possível exceção do que falo sobre A Mundana que é um tanto melhor do que o texto da a entender.
Billy Wilder reconsiderado em 2007
Pacto de Sangue
DOUBLE INDEMNITY. (EUA, 1944). De Billy Wilder. Com Fred MacMurray, Barbara Stanwyck, Edward G. Robinson. Versátil. Formato de tela: 1.33:1. 107min.
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A Valsa do Imperador
THE EMPEROR’S WALZ. (EUA, 1948). De Billy Wilder. Com Bing Corsby, Joan Fontaine. Classicline. Formato de tela: 1.33:1. 106min.
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A Mundana
A FOREIGN AFFAIR. (EUA, 1948). De Billy Wilder. Com John Hunt, Jean Arthur, Marlene Dietrich. Versátil. Formato de tela: 1.33:1. 111min.
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Testemunha de Acusação
WITNESS FOR THE PROSECUTION. (EUA, 1957). De Billy Wilder. Com Charles Laughton, Marlene Dietrich, Tyrone Power, Elsa Lanchester. Classicline. Formato de tela: 1.66:1. 116min.
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Avanti! – Amantes à italiana
AVANTI. (EUA, 1972). De Billy Wilder. Com Jack Lemmon, Juliette Mills, Clive Revill. Classicline Formato de tela: 1.66:1. 140min.
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A Primeira Página
THE FRONT PAGE. (EUA, 1974). De Billy Wilder. Com Jack Lemmon, Walter Matthau, Susan Sarandon. Versátil. Formato de tela: 2.35:1. 105min.
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Quando revemos a obra de Billy Wilder, a questão que surge é menos se Billy Wilder é um bom cineasta – claro que ele é –, mas quão bom cineasta Billy Wilder realmente é? Nenhum cineasta cuja obra começou no sistema de estúdios viu seu passe crítico subir tanto nos últimos vinte anos quanto Wilder. Há muitas razões para isso: Wilder estava vivo e ágil dando excelentes entrevistas bem depois de qualquer outro companheiro de geração, ele deu preferência a trabalhar em gêneros que em sua maioria envelheceram bem e seu cinismo corrosivo combina com as preferências destes nossos dias.
A fama de cínico de Wilder resiste a tanto tempo, seja junto aos fãs, seja da parte dos detratores, que pouco importa como esta faceta realmente se apresenta. Há sim um cinismo corrosivo presente na imensa maioria dos filmes do cineasta, mas, como Andrew Sarris bem observou, o cinismo de Wilder por vezes existe mais como uma máscara para o lado romântico do cineasta. Quase como uma admissão a priori de derrota, uma crença de que apenas via subterfúgios sua personalidade seria tolerável ao espectador. Acrescentaria que seu cinismo, por vezes, era mera extensão da sua concepção de personagens como marionetes. Wilder podia ser com freqüência um dos mais gélidos dos formalistas: o filme como um plano desenhado pré-filmagens, com pouco interesse de se permitir uma aproximação maior com o material. A mascara porém começa a cair a partir do final dos anos 60: A Vida Íntima de Sherlock Holmes, Avanti! e Fedora, em especial, são filmes muito distantes do Wilder habitual. Se Avanti! é um dos seus melhores filmes, entre outras coisas porque ele é capaz de pensar a sua situação central – Jack Lemmon é o filho de um milionário que ao buscar o corpo do pai na vila italiana onde o velho ia todos os anos passar as férias descobre que ele morreu em companhia de sua amante de duas décadas – e imbuí-lo da textura que por vezes escapa a seus conceitos filmados.
Pode-se ganhar muito comparando certos filmes de Wilder com seus equivalentes. Preston Sturges começou a filmar à mesma época, na mesma Universal de Wilder e vindo do mesmo departamento de roteiristas, e ele é associado ao mesmo tipo de comédia que Wilder é primordialmente lembrado. Mas as comédias de Sturges não são apenas mais engraçadas, mas modelos mais eficazes de construção dramática. Todo o trabalho nas comédias de Wilder existe em função de estabelecer seu humor, os filmes existindo como trens desgovernados a descarrilar e distribuir gags; enquanto nas comédias de Sturges o que vêem em primeiro lugar é o estabelecer de um mundo onde a situação dos seus personagens brota naturalmente. É uma questão de imaginação. Tanto Wilder quanto Sturges movem-se rapidamente por qualquer situação, mas enquanto Wilder é o artista do rascunho avançando até a proxima grande sacada, Sturges preenche suas cenas com character actors que parecem pertencer aos lugares, com sentimento que surge de uma quieta observação e consideração dos hábitos e movimentos que surgem de qualquer que seja o predicado que sirva de ponto de partida para o filme (nunca de maneira tão direta quanto em suas duas grandes comédias sobre a depressão Natal em Julho e Contrastes Humanos).
Esta longa digressão, permite que melhor possamos apreciar o triunfo de Wilder em Avanti!. O cineasta fez várias tentativas de emular seu mestre Ernst Lubitsch. A Valsa do Imperador, também recentemente lançado em DVD, por exemplo, é um saboroso confeito austríaco, um dos filmes mais agradáveis e menos ambiciosos de Wilder, onde ele reproduz amorosamente as superfícies do cineasta austríaco, mas pouco dos sentimentos que seus filmes despertam (um pastel de vento talvez, mas de certo preferível a A Mundana, um exercício em pseudo sofisticação política, brutalização gratuita de suas atrizes e mal gosto em geral que parece uma paródia de Wilder no que ele tem de pior). Antes de Avanti! houveram outras tentativas menos (Sabrina) ou mais (Amor na Tarde) bem sucedidas, mas é em Avanti! que o desejo de Wilder de homenagear Lubitsch se realiza a pleno contento. Trata-se de um filme longo (2h20) e metódico, em que Wilder vai com uma paciência completamente ausente dos seus clássicos preenchendo as lacunas do processo que Lemmon (na que é fácil sua melhor atuação para o diretor) passa. De certa forma Wilder apresenta o drama de Avanti! de maneira não muito diferente de, por exemplo, Se Meu Apartamento Falasse, com a diferença do filme fluir como se existisse num universo bem mais amplo e menos opressor, e, por conseqüência, tornar o personagem de Lemmon mais rico e menos joguete de suas necessidades dramáticas. O grande mérito do diretor em Avanti!, o que ele alcança que pouquíssimos outros romances conseguem, é captar como um casal aos poucos se apaixona.
Se a fase final da carreira de Wilder revela um grande rejuvenescimento criativo isto se deve em parte ironicamente ao asco que Wilder sentia pela chamada Nova Hollywood. Wilder, um cineasta geralmente tido como mais moderno do que a maior parte dos chamados cineastas americanos clássicos, tinha um pavor genuinamente reacionário diante das mudanças do cinema americano da época, a ponto de, em sua obra-prima, Fedora, incluir um monólogo em que o produtor veterano interpretado por William Holden (que visivelmente é tratado como o representante em cena do cineasta) se revolta com o que ele chama de os cineastas barbudos. Nesse sentido fica claro como A Vida Intima de Sherlock Holmes, Avanti! e Fedora existem como filmes fora do seu tempo. Obras de um cineasta completamente despreocupado em estar na moda.
A Primeira Pagina é um filme menos radical do que os outros Wilders da época, em parte por se relacionar com outros veículos cômicos para Jack Lemmon e/ou Walter Matthau feitos no período, mas não deixa de ser, à sua maneira, uma peça de resistência, dentro da sua crença num certo trabalho de artesanato, nas possibilidades artísticas de um certo tipo de veículo para estrela, quase como se Wilder para provar um ponto, estivesse se rebaixando a posição de um Mitchel Leisen. Não se trata de um filme de todo bem resolvido, Wilder não parece ter nenhuma grande idéia a respeito da celebrada peça de Ben Hecht e Charles McArthur (e de certo não é coincidência que Wilder opte por filmar um texto de dois verdadeiros pilares da velha Hollywood) para além de sugerir que a história possa ser interpretada como sendo sobre pânico homossexual, e o filme de certo não consegue fugir do espectro da muito superior versão de Howard Hawks (Jejum de Amor). Mas dentro de seu exercício de profissionalismo, o filme é exemplar.
Diante de um A Primeira Pagina percebemos como se tornar uma das últimas vozes do antigo sistema de estúdios fez bem aos instintos de Wilder, ajudando-o a desenvolver certas preocupações de artesanato que anteriormente lhe eram pouco caras, especialmente quando posto lado a lado com um filme como Testemunha de Acusação. Não que exista grandes méritos no texto original de Agatha Christie, mas a inabilidade geral de Wilder em conferir vida ao tipo de exercício que um talento menor como John Farrow faria sem grandes esforços não deixa de ser bastante indicativa. Atores inspirados, excelentes gags e bons diálogos podem compensar muitas deficiências formais, mas num thriller como esse eles pouco beneficiam Wilder, e olhe que aqui o cineasta conta com um ator magnífico, Charles Laughton, em grande momento. Pena que Laughton é basicamente a única razão para conferir este desastre, que grita a cada momento que quer ser um grande tour de force dramático, mas se revela, no máximo, esboços bastante vagabundos. Um filme completamente inerte, com pouca direção, sentimento ou propósito para além de sua suposta excelência que nunca se realiza (talvez o grande feito de Wilder aqui tenho sido se tornar, entre Testemunha de Acusação e A Mundana, o único diretor a extrair duas péssimas atuações de Marlene Dietrich).
Exceção feita a Crepúsculo dos Deuses, nenhum dos clássicos oficias de Wilder se sustenta tão bem quanto sua reputação sugere. Pacto de Sangue deveria ser a quintessência do que definimos como noir, e cumpre a descrição à perfeição, até demais. O filme parece ter sido pensado para destilar em ambiente de uma produção A todos os tiques dos policiais e da literatura pulp que vinham sendo feitos quase clandestinamente nos anos anteriores. Já existiam alguns noirs A antes (mais notadamente O Falcão Maltês, de Huston), mas não podemos retirar de Billy Wilder, o produtor, os méritos de praticamente ter descoberto o gênero – mesmo que ainda não tivesse descoberto a expressão –, nenhum filme até então se esforçara tanto em pertencer a ele. E o resultado final é ver tudo que existe de maneira algo bestial nos filmes anteriores muito bem embalada para consumo do público de classe média que jamais entraria numa sala exibindo um veículo vagabundo para Dan Dureya. Ninguém negará que Pacto de Sangue tem boas atuações (em particular por parte daquele gigante Edward G. Robinson, que colabora para adicionar alguma precisão aos procedimentos, independentemente dos esforços contrários do seu cineasta), algumas seqüências clássicas potentes e, na relação entre Robinson e Fred MacMurray, algo próximo de um centro no qual o filme possa se ancorar. Apesar disso, este “mais noirs dos noirs” é incrivelmente desprovido de qualquer sentimento de perigo, crime ou genuíno horror moral. É tão complacente quanto é eficaz. Mais do que filme noir destilado, o que Pacto de Sangue nós dá são os méritos e limitações de seu autor.