Jerzy Skolimowski

Um dos grandes destaques do Festival do Rio sem dúvida nenhuma é a pequena retrospectiva do Jerzy Skolimowski.  Fica ai o meu texto escrito ano passado para a Revista Taturana:

Todo o Desarranjo do Mundo

Por Filipe Furtado

O grande evento mais discreto do cinema ano passado foi o retorno as telas de Jerzy Skolimowski após 17 anos sem filmar. Quatro Noites com Anna abriu a Quinzena dos Realizadores em Cannes com boas críticas e passou por boa parte do circuito de festivais internacionais (incluindo o do Rio) sem chamar muita atenção para si. O retorno quase ocorreu em outros termos, por anos seus fãs acompanharam noticias de uma adaptação de Na America de Susan Sontag com Isabelle Huppert no papel central. O retorno hipotético – o projeto oficialmente segue em pré-produção – garantiria outro tipo de atenção e até alguns holofotes sobre Skolimowski, mas Quatro Noites com Anna não deixa de ser o retorno ideal para seu cineasta: um filme miniatura orgulhosamente menor metade dele transcorrendo num quarto com as câmeras voltas para os movimentos de um só ator. O único grande evento é o próprio retorno do cineasta para seus poucos, mas devotados fãs. De quebra, trata-se do retorno de Skolimowski a sua Polônia natal, seu primeiro filme polonês desde 67.

Assim como seu conterrâneo Roman Polanski (para quem escreveu Faca na Água), Jerzy Skolimowski é um destes cineastas exilados cuja obra é a primeira vista transnacional com filmes na França, Inglaterra e EUA que variam da adaptação literária de prestígio (filmou Nabokov, Graves e Turgenev) ao pulp, de filmes rigorosamente construídos a outros completamente fragmentados. Apesar disso não só há uma grande unidade na maior parte da sua obra como a Polônia segue uma assombração mesmo sobre boa parte dos seus filmes ocidentais. De todos os cineastas do bloco comunista que emigraram ao ocidente no fim dos anos 60 (Passer, Forman, Polanski), Jerzy Skolimowski é o único que jamais abandonou sua terra natal mesmo que só dois dos seus filmes ocidentais lidem diretamente com a sua Polônia (A Classe Operária, O Sucesso é a Melhor Vingança).

Não deixa de ser reflexo da facilidade com que Skolimowski filma homens deslocados. Seus filmes expressam esta sensação de confusão e perda tão facilmente que muitos críticos não tem trabalham algum em localizar um discurso sobre exílio ali.Pensemos naquele que talvez seja seu melhor filme Ato Final (70): um adolescente inglês arranja trabalho numa sauna e lá se apaixona pela garota alguns anos mais velha que trabalha com ele que se aproveita da situação ao máximo. Um ponto de partida corriqueiro para um filme consideravelmente duro e cruel sobre adolescência. Podemos dizer que Skolimowski tem facilidade para se identificar com seu adolescente perdido, mas é bom também lembrarmos que cada um dos quatro filmes que ele fizera no seu pais natal se centram em personagens não muito diferentes deste jovem inglês. Para além disso a força de Ato Final deriva justamente da forma como o filme consegue apresentar uma experiência de adolescência muito reconhecível e preenche-la de situações muito especificas. Numa das melhores sequências o rapaz leva um cano (ou o que ele acredita ser um) e fica esperando junto a um carro de cachorro quente para matar o tempo ele começa a consumir um sanduíche atrás do outro mesmo muito depois de ficar claro que ele vai permanecer ali sozinha. Como se a maior história d horror de rejeição adolescente de alguém da produção fosse revivida ali com cores bem fortes.

Os dois primeiros longas de Skolimowski Rysopsis e Walkover se centram entorno de Andrzej (o próprio cineasta). Mesmo personagens, os mesmo sentimentos centrais (deslocamento, o panico da vida adulta), filmes radicalmente diferentes. Rysopis é um filme toda drenado, a neutralidade que o ator Skolimowski expressa tão bem domina a ação. Dentro do tal cinema moderno dos anos 60 poucos filmes parecem se esforçar tanto para anular a euforia do cinema. Existem muitos planos-seqüências cuidadosamente coreografados e a tensão inevitável quando existe uma data limite (Andrzej é informado logo no começo que precisa se apresentar ao serviço militar as três horas do dia seguinte), mas o filme segue dedicado ao seu retrato duro quase sem concessões. A exceção fica por uma excitante seqüência subjetiva enquanto Andrzej desce as pressas à escadaria do seu prédio. Raro momento de liberdade num filme previsto no afunilamento dela. Apesar da secura não se trata de um filme realista (o cineasta emprega a mesma atriz para os três principais papéis femininos). Rysopsis se assemelha mais a alguns filmes japoneses do período do que vinha se produzindo na Europa seja na sua crueldade, seja nas suas operações preferidas para desestabilizar o naturalismo. O filme simpatiza com a posição anti-social de Andrzej, mas não mostra mais do que curiosidade por ele.

Rysopsis termina com Andrzej pegando um trem e Walkower começa com ele descendo de um. A quase gag interna mais do que conectar os dois projetos diz muito sobre a mudança de tom aqui. Walkower é ainda mais rigorosamente construído, mas é um filme que respira com uma leveza bem distante de Rysopsis. A deadline aqui é muito mais abstrata e ao mesmo tempo real: Andrzej está beira dos 30 anos. Ele tem ainda menos raízes e se desespera ainda mais sobre a idéia de fincá-las. Walkower se distancia de Rysopsis sobretudo por ter uma empatia que a secura do estudo de caso do filme anterior impedia: Andrzej é lutador de boxe como Skolimowski e o filme o associa a poemas escritos pelo diretor. Entre Rysopsis e Walkower chegamos a primeira pessoa. Boa parte do filme se constrói entre elaborados planos seqüências em que Andrzej corteja uma ex-colega que encontra no seu retorno a Varsóvia. Walkower tem bem mais cenas de discussão que Rysopsis mas ambos são filmes impulsionados pela ação: os longos planos vão aos poucos sugerindo um completo desarranjo entre Andrzej e o mundo que ele desesperadamente tenta se afastar.

O filme e personagem finalmente alcançam seu habitat natural quando Andrzej sobe ao ringue. Boxe poucas vezes fez tão sentido do que quando Skolimowski está ali ele próprio disparando socos e sendo castigado em retorno. O cineasta filma o ringue de dentro sem nenhum interesse no tipo de tour de force hustoniano que Scorsese eternizaria mais tarde em Touro Indomável: boxe em Walkower é uma questão de corpos coreografados no plano. Não é a câmera que projeta energia, mas o próprio corpo do seu autor/ator que pode finalmente sair da posição defensiva e se liberar junto ao espectador. Walkower é a despeito de toda sua energia um filme ainda mais fatalista que Rysopsis: caminha de forma estreita até duas escolhas igualmente inúteis. O filme até nos nega seu retorno ao ringue e entrega só os rituais esvaziados do boxe amador. Até a recusa da responsabilidade leva a mediocridade. Walkower encontra seu palco e depois o esvazia.

Se entre Walkower e Rysopsis, qualquer sugestão de realismo se dissolvia e o filme aos poucos se estabelecia como um duelo entre seu protagonista e o mundo, Bariera intensifica o processo ainda mais. Jan Nowicki não tem nada da presença do ator Skolimowski e quase desaparece em meio ao mundo a sua volta que ganha tons de cinema fantástico. A atmosfera sobrenatural que ocasionalmente ecoavam nos planos-seqüências de Andrzej caminhando em Walkower se torna predominante aqui. A paisagem que Nowicki transpassa tem um inegável valor simbólico, mas Bariera nunca sugere abstração, seus sentimentos de inadequação por demais diretos para uma alegoria.

O filme se abre num elaborado jogo entre um grupo de universitários que tem como premio a oportunidade de largar a faculdade. Skolimowski sempre teve um bom olho para o potencial de intensidade do ritualístico e ele é mais que aparente aqui. Ao final desta primeira seqüência de que Bariera é um filme incomum, Skolimowski famosamente afirmou que sua mente sempre fora treinada por associações poéticas e que narrativa direta lhe elude e Bariera é o momento onde seu cinema dá o salto definitivo. Se Walkower e Rysopsis se construíam na relação entre ator Skolimowski e a sua câmera, em Bariera seu principal colaborador é o compositor Krzystof Komeda cuja música vai aos poucos se estabelecendo como verdadeiro texto do filme. Nosso verdadeiro guia pelo seu mundo. Enquanto progride, Bariera vai aos poucos criando uma fissura dentro deste universo no meio de seu variado de situações (nunca temos certeza se o que vemos faz parte da narrativa ou se trata de uma alucinação), o desarranjo de Andrzej retomado de forma ainda mais cristalina enquanto a tal barreira do título – a primeira vista simplesmente referente só ao velho e o novo – vai ganhando mais sentidos.

Bariera acrescentou um peso histórico sugerido somente a distancia nos filmes protagonizados por Andrzej com a II Guerra uma assombração ainda muito viva a despeito de ser uma memória distante para os jovens personagens do diretor. Skolimowski realizou um último filme na Polônia, Hands Up! aue acabou interditado pelo censores e permaneceu inédito. Depois de 13 anos em que o cineasta filmou majoritariamente na Inglaterra, o governo polonês lhe deu sinal verde para finalmente lançá-lo. Só que a esta altura fica a pergunta o que fazer com material que representa um momento muito especifico da Polônia e do seu cineasta perdido 13 anos no tempo. No lugar de simplesmente lançar Hands Up! em 1981, Skolimowski o reeditou e acrescentou um prólogo de 25 minutos em forma de filme diário. As duas partes do filme não dialogam diretamente, nada no diário posterior do cineasta clarifica os significados do filme posterior, ao invés disso, elas assombram uma a outra. Hands Up! estabelece uma ponte entre 67 e 81, um filme que termina sendo ele próprio uma fissura no tempo. O Hands Up! original é um happening teatral bem mais obtuso que os três longas anteriores, muito do seu sentido quase indecifrável sem um conhecimento razoável sobre a Polônia. Skolimowski sempre afirmou trata-se do seu trabalho favorito e o filme avança em direção a meia dúzia de minutos finais de espetáculo físico impressionante, mas o filme parece mais completo e focado neste seu estado eternamente transitório entre dois momentos, o fim dos anos 60 e o surgimento de Lech Walessa.

Holds Up! devolveu a Polônia ao centro das preocupações do cineasta, o resto da sua produção dos anos 80 toda voltada para um dialogo com seu país do ponto de vista de um artista expatriado. A Classe Operária e O Sucesso é a Melhor Vingança são estudos em contrastes; o primeiro – único filme na obra do diretor a alcançar alguma popularidade fora do circulo dos seus cultores – equilibra uma construção clássica com a improvisação diária no set proveniente da decisão de incorporar a corte marcial baixada no seu país natal durante as filmagens, enquanto o segundo – uma produção bem maior – é deliberadamente fragmentado e descentralizado. Ambos os filmes fazem uso extensivo da residência londrina do cineasta. Curiosamente o clássico A Classe Operária é de um frescor maior que o jogo de espelhos ultra moderno de O Sucesso é a Melhor Vingança.

A Classe Operária é quase um filme de ação. Tudo nele se resolve em atividades concretas. Enquanto O Sucesso é um filme todo construído sobre possíveis discursos sobre a Polônia, os personagens de A Classe Operária só podem se concentrar no momento seguinte. Temos um grupo de operários poloneses lançados ilegalmente em Londres para reformar uma casa de algum figurão em quatro semanas. Apenas o mais jovem deles Nowak (Jeremy Irons) fala qualquer palavra de inglês e enquanto a obra atrasa, o orçamento para sobrevivência se revela consideravelmente enxuto e seu país natal entra em crise, Nowak começa a tomar decisões progressivamente extremas para concluir o trabalho: manter seus homens no escuro sobre as noticias, alterar relógios de forma a tornar a jornada de trabalho mais longa e algumas soluções bem criativas para multiplicar as compras (digamos apenas que cada cena passada num supermercado é um clássico). O elenco de apoio polonês é a melhor companhia de comediantes mudos de todo o cinema e Irons isolado na maior parte do tempo faz um solo quase silencioso num trabalho de cinema físico impressionante. Como tradução do exílio, isolamento, de ter de viver no tempo presente – nenhuma margem de segurança, somente cada momento contando – a poucos paralelos para esta bela e triste comedia.

Depois do sucesso de A Classe Operária, o cineasta fez o fascinante e caótico O Sucesso é a Melhor Vingança e uma série de adaptações literárias (a melhor sem dúvidas The Lightship entre o filme de câmara e o thirller) antes de entrar num longo sabático em que se dedicou a sua carreira paralela de pintor. O que nos traz de volta a Quatro Noites com Anna. Um filme simplíssimo sobre o desajeitado e desagradável voyeur que passa seus dias e noites obcecado por uma enfermeira. È um filme de mestre impecavelmente controlado nos seus pouquíssimos elementos de cena – da secura da paleta de cores da fotografia as poucas locações e atores. Estamos muito distantes dos jovens desorientados dos seus primeiros longas e da necessidade de tentar dialogar com seu pais distante de Classe Operaria e da versão 2.0 de Hands Up!, mas lá está o mesmo absurdo, a mesma confusão perante ao mundo. Jerzy Skolimowski é um dos grandes cineastas pouquíssimo reconhecidos, a precisão de Quatro Noites com Anna só reafirma isso.

2 Comentários

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2 Respostas para “Jerzy Skolimowski

  1. Rogério Silva

    Muito legal o seu retorno, mas pelo visto o Howard Hawks rodou. Ou estou enganado?

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