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Com toda a atenção dada pela mídia brasileira aos 80 anos de Pelé, é justa apontar que lá atrás em 1963, o cinema brasileiro dedicou-lhe um docudrama no calor do momento. O Rei Pelé foi dirigido pelo ótimo cineasta argentino Carlos Hugo Christensen (que passou um quarto de século por aqui), com diálogos do Nelson Rodrigues (o argumento é do Benedito Ruy Barbosa) e o próprio Pele em cena na vida adulta.
Christensen é uma escolha interessante para comandar o filme por uma série de motivos, mas sobretudo pela sua distância do personagem principal e seu gosto por uma atmosfera carregada de sugestões de horror. O Rei Pele está muito distante da celebração oficialesca prometida pelo título e o envolvimento direto do biografado. Passada as sequencias iniciais um tanto claudicantes da infância em Três Corações, o filme se revela uma obra sobre como difícil é ser Pelé, mas não numa chave narcisista, a dificuldade nunca está na celebridade, mas no misto de pressão sobre “o rei do futebol” e a fragilidade da carreira de atleta. Quando Pelé pega o seu primeiro trem para Santos encontra um jogador fictício em fim de carreira que lhe perseguira como um eco fantasma do que pode acontecer caso as coisas desandem, ideia tornada literal quando após a lesão na Copa do Mundo de 1962, o fantasma retorna para declarar Pelé acabado.
Muito do fascínio do filme vem justamente de ser realizado com a carreira de Pelé em curso, ele já era mitificado como “o rei do futebol”, mas ainda existe no nosso plano terreno. O filme mostra que jornalistas o questionaram, que o sucesso internacional com a seleção não lhe era garantido, em suma a momentos em que o filme nos lembra que Pelé um dia não foi a unanimidade celebrada hoje, que recebeu o mesmo escrutínio de tantos outros craques. Christensen da toda atenção para ansiedade e temores de Pelé, ele soa humano no filme como poucas vezes nas últimas décadas. Não sei o quão preciso o filme é sobre os questionamentos a Pelé após a lesão na Copa do Chile ou o quanto os roteiristas a usaram para garantir o arco dramático de ascensão/queda/recuperação (o clímax eufórico é com o primeiro título mundial do Santos), mas Christensen extrai muito dali, por vezes a segunda metade do filme sugere um A Hard Day’s Night macabro, com direito a uma sequência de pesadelo de Pelé sobre o fim da sua carreira no qual o cineasta argentino coloca em tela seu gosto pelo filme de horror.
O Rei Pelé foi lançado na mesma época que o bem mais conhecido Garrincha, Alegria do Povo do Joaquim Pedro de Andrade. Curioso pensar os dois filmes juntos com essa distância de quase seis décadas. Não diria que se trata de um dos melhores filmes de nenhum dos cineastas (O Padre e a Moça, Couro de Gato e Macunaima para Andrade, O Menino e o Vento, A Morte Transparente e Viagem aos Seios de Duilia para Christensen), Garrincha tem um lado sociológico de intelectual a olhar cultura popular que me cansa um pouco, mas tem momentos ótimos junto a Garrincha. É curioso que o filme supostamente mais alienado tenha uma atenção muito grande para as fragilidades da carreira de atleta e a exploração do meio do futebol. Garrincha é um clássico do cinema direto, mas a sua maneira O Rei Pelé se revela hoje igualmente moderno, na maneira que seu docudrama se fragiliza na autoficção. Ainda permanece o melhor retrato que temos de Pelé.
O filme está no You Tube:
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