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Eu assisti hoje pela manhã um par de clássicos menos conhecidos do cinema japonês dos anos 90, Os Amigos (1994) de Shniji Somai e Labirinto dos Sonhos (1997) de Gakuryû “Sogo” Ishii, e me coloquei a pensar nos mitos da história de cinema e das formas como a formação de cânone podem transcorrer no ocidente. Um grande falso mito: a derrocada do cinema japonês por volta de 1980. Ele mais ou menos propõe uma ausencia de sangue novo renovador no cinema japonês a partir deste momento até mais ou menos a descoberta do Takeshi Kitano em meados dos anos 90 (com o talentoso e de um modo0 geral bastante acessível Juzo Itami como único nome a se estabelecer neste meio termo) para além de alguns espaços de interesse cult (anime, horror) que viriam a explodir com mais força mainstream na parte final dos anos 90. Ela acompanha uma morte quase complete de interesse pela obra tardia de vários veteranos japoneses que não se chamavam Akira Kurosawa, Shohei Imamura ou Nagisa Oshima. Quantos cinéfilos sabem que o último filme de Kaneto Shindo é de 2010? Ou que Masahiro Shinoda trabalhava tão tarde quanto 2003 ou Ichikawa em 2007?
Me permitam ser bastante malicioso e apontar que essa derrocada ficcional acontece simultaneamente com o interesse crescente na crítica ocidental pelo cinema chinês como se fosse genuinamente difícil acompanhar ao mesmo tempo mais de um cinema nacional oriental (e para piorar a China oferecia três). Seria essa uma afirmação justa? Provavelmente não de todo, mas é difícil não manter sob suspeita o aparato de curadores de festival, distribuidores de arte (cinema e home vídeo), críticos de cinema internacionais especializados em “cinema mundial” e mesmo as editoras acadêmicas que cobrem o meio. Estes espaços que decidem o que é tido como importante e de consideração para “o cânone”, seja ele histórico ou contemporâneo. É um sistema cruel, político e econômico, com uma serie de consequências como o quase apagamento daquele que costuma ser o mais explorado cinema nacional fora do eixo EUA-Europa ocidental. Pela mesma observação, não seria injusto apontar que os interesses financeiros americanos tiveram papel tão central na descoberta do cinema japonês no pós-guerra quanto o óbvio enorme valor artístico de um Mizoguchi ou Kurosawa. Pensar sobre essas questões e como melhor se movimentar por entre elas parece essencial para um engajamento cinéfilo sério hoje, ainda mais porque se a internet facilitou a circulação de filmes menos famosos, ela também limitou como o discurso é apresentado para além de considerações arrivistas e comerciais (toda a narrativa de cinema na web só é permitida respirar se ela está pronta para ser monetizada em uma esfera ou outra).
A noção da derrocada do cinema japonês não se materializou do nada, já que a indústria local mergulhou numa crise crescente ao longo dos anos 70 e na altura do começo dos anos 80 estava em suficiente destroços que certamente era mais difícil ter o tipo de sistema em ação que ajudou o desenvolvimento de cineastas como Shinoda ou Kihachi Okamoto. É certo que não seja acidental que os maiores autores japoneses descobertos nos anos 80 e 90, Juzo Itami e Takeshi Kitano, fossem ambos atores muito bem estabelecidos quando decidiram dar o salto para carreira de diretores. Ainda assim muito bom trabalho era feito. Gastou-se 14 anos para críticos ocidentais descobrirem Kiyoshi Kurosawa com Cure em 1997, mas seu filme de estreia Kandagawa Wars (1983), quase um pinku dirigido pelo Carlão Reichenbach, é um dos seus melhores filmes e talvez um apoio crítico maior tivesse feito o primeiro ato da sua carreira soar menos como um irregular período de aprendizado. Kurosawa não era um mero aprendiz, mas alguém em briga constante com os porões do cinema local à espera de oportunidades mais consistentes. Eu acredito que uma das poucas contribuições relevantes da crítica é tentar ajudar a nutrir esse tipo de talento marginalizado.
Não há falta de fortes filmes japoneses feitos entre 1976-1995, podemos pensar em The Man Who Stole the Sun (Kazuhiko Hasegawa, 1979), Rio de Lama (Kohei Oguri, 1981), Bu Su (Jun Ichikawa, 1987) ou March Comes in Like a Lion (Hitoshi Yazaki, 1991) que permanecem relativamente desconhecidos para além de alguns espaços cults específicos porque não tem o selo de aprovação do autor consagrado ou dos sistemas de suporte críticos. Mas as coisas aparentam ser diferentes quando perguntamos aqueles mais próximos ao cinema local, quando o grande crítico japonês Tadao Sato, alguém que nunca esconde sua paixão pelo “cinema japonês clássico” contribuiu uma lista de 300 grandes filmes japoneses em 1995, ele ainda encontrou espaço para 70 filmes dos então últimos vinte anos. Importante ressaltar que não escrevo essas palavras com um olhar superior de um grande especialista, mas de alguém que busca estudar este período, algo que talvez estivesse muito mais adiantado se na juventude não me tivessem dito que se tratava de um grande deserto.
Retornando as minhas sessões matutinas, acho bastante triste o apagamento desta geração de cineastas japoneses que começou a filmar entre o fim dos anos 70 e o começo dos anos 80 como os mencionados Somai e Ishii ou ainda Nobuhiko Ôbayashi e Mitsuo Yanagimachi. Esta geração pós cinema novo que foi declarada internacionalmente “desimportante” a despeito de muito sucesso crítico local. Ôbayashi me parece finalmente ganhar um certo cultualmento critico após um longo período em que sua carreira era eclipsada pela sua estreia não muito característica Hausu, um experimento em imagens surrealistas de horror que sempre foi um favorito em certos círculos. Eu permaneço sempre impressionado com o relativa negligencia com que são tratados Ishii e Yanagimachi a quem eu diria se tratarem de tão forts, provocativos e formalmente expressivos quanto qualquer mestre japonês anterior a eles. Ambos são artistas muito confrontadores, Ishii começou a carreira como um literal cineasta punk e os primeiros dois filmes de Yanagimachi são trabalhos gêmeos sobre gangue de motoqueiros e a radicalização de um jovem terrorista de direita e ambos tem um gosto similar para descrever a alienação para com a sociedade japonesa através de fortes rimas visuais e um trabalho punitivo com locações. A ameaça do perigo está sempre a espreita, o Ishii de hoje partia de uma premissa típica de um thriller erótico, uma mulher atraída por homem que ela acredita poder ser um serial killer, e a transforma numa exploração por via de imagens da sedução do perigo, uma serie de tableaux em preto e branco que combinam longos blocos de inação, elipses fortes e um uso de onibus em movimento carregados de erotismo e ameaça, como uma forte descrição de um risco crescente, um gozo da morte como poucos filmados. Da mesma maneira existem poucos filmes japoneses tão fortes e apocalípticos quato a obra prima de Yanagimachi Fire Festival (1985), que parte das mesmas suspeitas para com o mmilagre econômico japonês que por vezes ofereciam o subtexto dos filmes do Cinema Novo, mas de uma perspectiva mais violenta e satírica com a beleza da natureza cedendo espaço ao sangue.
Eu diria que não há no cinema japonês filmes que expressão a atração pela anarquia da sociedade local como os de Ishii e nenhum que expõe a revolta reacionária dos seus excluídos como os de Yanagimachi. Num mundo perfeito, todos esses cineastas poderiam sentar na mesma mesa que um Shimizu ou Shinoda (se não um Ozu ou Imamura, mas deveriam também, o panteão tem espaço para todos), desde que comecemos todos a pensar para além dos sistemas que decidem o que é ou não essencial, algo que podemos ponderar a respeito desses filmes japoneses, mas muitos outros desenvolvimentos do cinema atual.
Poderias fazer uma lista daquelas para o Cinema Japonês, como fez para Hong Kong.. fica a sugestão!