(English version here)
Do quarto da Vanda não se sai mais. Como já disse: o século XXI foi aberto com No Quarto da Vanda. “Não há remédio: não podemos deixar de ver”. “Jamais poderemos deixar de ver”. – João Bénard da Costa em 2000
Por via de regra não sou um grande fã de ensaios de aniversario, ainda mais agora no qual o jornalismo cultural parece ter decidido que só pode-se tratar de filmes antigos a cada cinco anos. Mesmo assim, na última sexta o Público muito bom jornal português deu a capa da sua revista de artes semanais Ipsilon ao aniversário de 20 anos da primeira exibição pública no festival de Locarno de No Quarto da Vanda do Pedro Costa e essa me apareceu sim uma ocasião que merece ser celebrada. Não é simplesmente que Vanda seja um grande filme, mas que Vanda pareça um genuíno ponto de virada, o começo de algo e não só de uma nova fase excitante de um cineasta importante. Há uma certa ideia de cinema tal qual desenvolvida nas últimas duas décadas que parece profundamente em dívida para com No Quarto da Vanda, parte dela boa, parte má, quase toda em desrepresentando o feito de Costa de uma maneira ou outra, já que como a maioria dos grandes, Pedro Costa cria um olhar especifico que é por demais único para pertencer a quem mais for, ainda assim a sombra de Vanda permanece a espreita.
Pedro Costa lhe reconheceu como um recomeço, ele abandonou as equipes de filmagem profissionais dos seus filmes iniciais, seguiu o convite de Vanda Duarte e lhe dividiu o quarto por cerca de um ano, filmando a ela, sua irmã Zita (que por alguma razão é sempre esquecida) e as idas e vindas no seu entorno. Costa certa vez descreveu a experiência da seguinte forma “De certa forma, este é o meu primeiro filme, porque é a primeira vez que encontro a possibilidade de uma família”. Uma das coisas belas sobre No Quarto da Vanda é que se ele permanece hiper focado em Vanda Duarte, existe um sentimento forte de comunidade ao seu redor. É um filme modesto n melhor sentido, Costa, seu homem de som, Vanda e Zita no quarto dela. Há um forte sentido de trabalho envolvido, e seu filme começa com um convite de Vanda Duarte, ele nunca abandona as implicações desta possibilidade. À época da primeira exibição brasileira, meu amigo Juliano Tosi disse algo numa mesa redonda que sempre ficou comigo “é como se o cineasta fosse um artesão do filme”, é uma completa inversão de como filmes são percebidos no mercado dos festivais de cinema, de como o autorismo é pensado nos dias de hoje, mas cabe, Costa como o trabalhador humilde do filme que precisa acontecer de alguma maneira. Há é óbvio uma forma de essencialismo envolvida ai ao qual faz bem se suspeitar um pouco, Costa não está exatamente atrás de uma verdade baziniana (mesmo que Vanda sugira a sua maneira uma atualização dos experimentos pós Bazin de Rouch e Warhol), Vanda é um trabalho de prospecção com forte mão autoral, mas tem uma humildade com que chega até este lugar que a descrição de Tosi captura. Se No Quarto de Vanda é o registro das impressões de Pedro Costa sobre o mundo ao redor de Vanda Duarte, o elemento central é impressões e não o próprio Costa.
Eu disse que No Quarto da Vanda em retrospecto parece um começo para além da própria obra de Pedro Costa e para pensar nisso é útil retornar a algumas coisas. Primeiro, voltar ao ano 2000 e os debates entorno de cinema digital da época. Era, outros tempos, havia muita ansiedade entorno do digital, uma intuição podemos dizer sobre como o novo formato seria em breve central para a realização cinematográfica e o qu fazer com sua superfície feia e chapada, ainda assim era uma ansiedade de outra natureza da de anos mais tarde quando a película desapareceria quase por completo e a ansiedade se torna mais cinéfila que de realização (depois que Jean-Marie Straub abandonou a película, a questão estava resolvida), muito mais uma questão de encontrar sentido nas mudanças radicais na textura dos filmes. Naquele ponto, o que fazer com o digital era uma questão sobretudo de realização. O ano 2000 foi chave nessas discussões cheio de filmes decisivos como Vies (Alain Cavalier), Bamboozled (Spike Lee), Os Catadores e Eu (Agnes Varda), Teenage Hooker Became Killing Machine in Daehakroh (Nam Gee-woong) e Six Easy Pieces (Jon Jost). Tratados experimentais similares, filmes que se moviam entre uma superfície radical das imagens e uma intimidade quase diarista, eles eram objetos intensos que não poderiam sair a uma década atrás, pelo menos não tão próximo do mainstream quanto à sua época (alguns filmes em super8 que levam a ideia de Welles sobre o formato como caderno de anotações do cineasta como a obra de Jairo Ferreira devem ser o que de mais perto o século XX produziu). Pode-se observar como a maioria desses filmes tem uma qualidade de rascunho sobre eles, notas que o cineasta está a compor, filmes que ignoram o industrial por uma relação mais direta entre olhar e ideias do realizador e o ato de produzir imagens, neste ponto o digital não foi ainda industrializado, é uma forma artesanal de fazer cinema.
Entre todos esses filmes, No Quarto da Vanda é o melhor e o mais radical. Se Costa deixou as equipes de filmagens para trás, ele permaneceu tomado por um olhar especial para luz e a relação entre rostos e cenários em filmes, mas a luz aqui é menos intensa nos filmes posteriores protagonizados por Ventura e Vitalina Varela. No Quarto da Vanda não chega a ser tão mítico que esses filmes futuros, então há aproximação entre a câmera digital de Costa e os rituais diários de Vanda Duarte fica ainda mais em primeiro plano. Se Costa considerava a luz e tableaux de Ossos como além da conta, No Quarto da Vanda é entre outras coisas um filme sobre achar a exata distancia justa, em fazer jus ao convite inicial de Vanda Duarte, de como exatamente levar o cinema aquele espaço.
O outro aspecto central tem relação com o mundo de Vanda, Fontainhas como um lugar, e mais importante, uma comunidade. Jacques Ranciere certa vez apontou quando discutia a política dos filmes de Costa que a maneira que o cineasta vê os imigrantes de Cabo Verde, os brancos pobres e os drogados que populam seu trabalho propõe uma existência muito a parte do proletariado, “explorado e militante” que podemos encontrar no cinema de esquerda do século XX. “O seu modo de vida, mais do que de explorados, é de entregues a si próprios”. A luta agora é um estado de abandono. Nos filmes de Costa, vive-se nas ruínas do projeto neoliberal, seu tema são os despossuídos deixados para trás. As novas formas de exploração agressivas trazem com elas mutações nas relações de poder e o cinema de Costa busca pensar novas maneiras de observa-las e compartilha-las. No Quarto da Vanda é um dos primeiros filmes a parar e ponderar como imaginar essas formas de luta e existência após tudo que a terceira via dos anos 90 jogou no lixo. Boa parte do cinema moderno do primeiro mundo afinal nasce naquele pós segunda guerra e suas ilusões de uma rede de segurança e Vanda propõe como sobreviver quando esta ilusão é exposta (Costa é também o raro cineasta europeu com um bom pulso para noções imperialistas como Cavalo Dinheiro bem atesta). A partir das condições deste mundo que ele emprega um olhar, Costa localiza um frescor, a sensação de algo novo como João Bénard da Costa descreve a perfeição.
O feito de No Quarto da Vanda é o de encontrar um perfeito meio termo entre intimidade e imaginação, de criar uma forma de ficção a partir de tão direta imersão. Há dois movimentos paradoxais da câmera de Costa, o primeiro é de distância, uma radicalização de todo o processo de apagar a editoralização no cinema, trata-se do menos moralista filme já feito sobre drogados, Costa observa Vanda e todos ao seu redor e isto basta. A montagem é chocante de tão radical, tudo cabe em No Quarto da Vanda, entre outras coisas porque o filme não é ligado a nenhuma preconcepção, ele havia a lugares previstos num misto do que seu mundo oferece e do que a curiosidade de Costa resolve focar. A outra é a sua dedicação a ficção. No Quarto da Vanda é firmemente dedicado a criar um mundo a partir dos arredores de Vanda. Não se trata de um documentário mesmo se Costa é aqui mais discreto do que nos seus trabalhos seguintes. Nos filmes estrelados por Ventura e Vitalina, é sempre claro como o projeto de Pedro Costa envolve a ideia de filmar os despossuídos como John Ford filmava a cavalaria americana. O sentido mítico é dado no momento que Ventura adentra o quadro. Vanda Duarte se oferece menos a câmera de Costa, a negociação entre eles é mais dura. Ainda é uma questão de construir uma ficção, mas Vanda é menos mítica, uma presença mais reservada.
A maneira como a ficção é construída em Vanda não está muito distante dos documentários que Eduardo Coutinho começou a fazer pela mesma época. Uma questão de um espaço dividido, uma parceria intima entre cineasta e as pessoas em frente da sua câmera e uma ideia de performance. Inácio Araújo certa vez descreveu Coutinho como criador do “documentário fantástico”, e pode-se dizer algo similar sobre Vanda, chama-lo de uma ficção não-ficção fantástica. Trata-se em ambos os casos de uma arte do retrato que é sempre tomada por mistério. A maioria dos exercícios de auto ficção que vieram depois do filme de Costa parecem assumir o ato de encontrar estes personagens um fim em si mesmo, mas não Vanda cujo cada gesto é tomado de um peso e está pronto para ser investigado, reconfigurado e reimaginado, posicionado como parte de um mundo maior. Ela não é um estudo de caso, uma junkie, uma mulher pobre, ela é uma personagem de cinema sempre pronta a criar drama mesmo se ela parece feliz em permanecer a maior parte do tempo em seu quarto.
Há com frequência um sentido sobrenatural no cinema de Costa, suas sombras, seu jeito com seus atores. Cinéfilos descrevem regularmente seus filmes dos anos 90 em termos de zumbis (lembro-me do antigo DVD de Ossos, Serge Kaganski se animando todo quando teve a chance de falar das conexões entre o filme e George Romero) e os trabalhos mais recentes são invocados em termos de histórias de fantasmas (sei que eu já o fiz) por conta de todo o sentido de história assombrada que acompanha Ventura e Vitalina. No Quarto de Vnda é assombrado também e não é como se fosse impossível pensar em Tourneur enquanto se assiste-o, mas é tão focado em existir no momento, tão dado as reações imediatas de Vanda, a experiência soa diferente, um filme de Costa mais materialista e menos cósmico.
Tudo isso é capturado enquanto o espaço desaparece. É uma reclamação recorrente entre os mais dedicados a Costa que a cobertura de grande mídia dos seus filmes age como se Fontainhas ainda fosse um lugar e não um dos muitos bairros sacrificados em nome do Deus da renovação urbana. Isto é justo e a maior parte dos artigos neste viés traem uma profunda ignorância e merecem todas as críticas, mas por mais materialista que a obra de Costa seja, Fontainhas é mais comunidade do que só um lugar. O poder desses filmes está ligado a como imaginam o pertencimento fora da sociedade. O deslocamento dos imigrantes, mas também as conexões que eles forjam. “É a primeira vez que encontro a possibilidade de uma família” como Costa diz. Uma das minhas partes favoritas de No Quarto da Vanda é o uso do som direto, como mesmo quando se está lá com Vanda, também se está com um sentimento forte da vida correndo do lado de fora do quarto. Fontainhas soa viva mesmo quando o governo se move para apaga-la, as ocasionais viagens para dentro da comunidade sempre trazem consigo uma revelação e mesmo quando se permanece no mundo privado de Vanda, este nunca é insular e isolado, mas localizado num espaço maior via luz e som. No cinema de Costa, existir é uma forma de resistência e ser capaz de propor uma ficção para reagir a este apagamento patrocinado pelo governo é a tentativa do cinema de desafia-la de propor um mundo diferente.