(English version here)
Então, vamos falar um pouco de vício. Eu tenho 38 anos e sou viciado nos Boston Celtics. Eu coloco um investimento pessoal exagerado num time idiota de basquete, me ajuda a me manter nos momentos depressivos, me dá esperanças tolas, traz stress demais para a minha vida. Sou viciado o suficiente nos Celtics para ter memorias perfeitas da noite que serve de pano de fundo para o clímax de Joias Brutas, o novo filme dos irmãos Safdie. Eu estava preso no aniversário de 15 anos das minhas primas gêmeas checando sem parar o telefone do meu irmão enquanto xingava elas, o resto da minha família e a obrigação de certos eventos sociais, o time estúpido do Celtics que deveria ter fechado a série uns dois jogos antes, cada jogador que amassava o aro (e foi um jogo horrível), deve ter sido uma das noites mais estressantes da minha vida (eu certamente pensei em tantos palavrões durante aquelas duas horas quanto são ditos ao longo desse filme) e quando o jogo acabou em vitória, eu não achei nada daquilo pouco saudável, mas fiquei excitado e comecei a me convencer “Miami está contundida, quem sabe este é o ano em que tudo dará certo para nós, Deus nos deve uma dessas” (spoiler: perdemos). Joias Brutas compreende essa mentalidade obsessiva/compulsiva melhor que a maioria dos filmes sobre o tema. Ele também a expande conectando-a com exploração e ilusões do capitalismo tardio como poucos filmes recentes conseguiram.
Joias Brutas é um drama de vício, mas é numa escala maior o reimaginação do mito de Sísifo nos termos das pressões do capital moderno e é muito hábil de usar o primeiro para iluminar o segundo. No seu centro está Howard Ratner (um muito bom Adam Sandler), um joalheiro judeu que calha de ser um jogador viciado que é provavelmente um dos personagens principais mais desagradáveis que um filme mainstream apresentou em muito tempo. Diz muito que as únicas pessoas em sua vida que lhe demonstram alguma afeição é sua amante Julia (Julia Fox) e as vezes seu filho mais novo. Todos os demais o enxergam na melhor das hipóteses como um meio para um fim e no piores casos ficariam satisfeitos se ele caísse morto (se não trabalhando diretamente por isso). Ele está envolvido com as joias do título que ele acredita valerem perto de milhão e para os quais pegou um empréstimo de 100 mil dólares junto a um agiota muito insatisfeito (Eric Bogosian fazendo mais com seus olhos irritadíssimos do que muitos atores fazem com centenas de falas). Ah, e ele empresta as joias para Kevin Garnett, craque do Boston Celtics, que não parece muito disposto a devolve’las na sua crença de que elas têm algum valor místico que lhe influencia o jogo. Joias Brutas exige um equilíbrio muito difícil da parte de Sandler e Josh e Benny Safdie, o filme começa em modo de crise total com Howard saindo de uma colonoscopia para acrescentar o peso da morte próxima e os capaganas do agiota ameaçando lhe matar se ele não receber logo e termina pouco mais de duas horas depois após ele expirar cada opção que tem em nome da crença de algo mais está muito próximo. Não há quase nenhuma variação de tom e salvo por algumas cenas com a mante quase não abandonamos a sua perspectiva. Muitas das descrições de Joias Brutas lhe descrevem como uma crise de ansiedade em forma de filme e é justo, mas é também um filme muito hábil em usar a mentalidade do viciado como base para um thriller propulsivo: porque Howard tem sempre a certeza de que está as beiras de um grande golpe de sorte e como sua perspectiva toma conta da forma do filme, o público é convidado a seguir com ele.
Howard tem a certeza que está vencendo, de fato, no momento mais famoso do filme (eternizado na web nuns mil memes) ele explica a Garnett sua ideologia de vitória comparando o espirito competitivo de KG a sua maneira de empreendedor capitalista, na verdade ele só se aproxima mais e mais da sua pulsão da morte. Joias Brutas é um caso fascinante de capitalismo do desastre em ação, uma catástrofe pessoal após a outra que é vendida como uma nova oportunidade de “vencer”. Howard nunca para de perder e mal reconhece qualquer passo positivo. Ele é um homem numa missão que ele acredita ser alcançar o máximo da adrenalina do capital, mas é só uma rota suicida. O que é tão perturbador sobre ele é que raramente se é posto em contato com tal sentimento autodestrutivo tão desprovido de consciência. Ele segue apostando seu futuro imediato em nome de elusivo pico esfuziante, uma satisfação momentânea de lucro rápido. Howard não está feliz quando Julia lhe mostra sua nova tatuagem e lhe promete devoção, ele não está feliz na grande reunião familiar ou quando finalmente vende as joias (por muito menos dinheiro que esperava), ele só está completamente feliz quando sua luta por um tanto mais alcança seu final inevitável.
A grande cena com Garnett é um ponto alto de drama ressonante e bem modulado. Para a confusão sincera do atleta e como os Safdies são hábeis em ligar esportes, múltiplas relações de exploração, as auto ilusões de Howard, vício de jogo e as grandes transações de dinheiro ao redor deles. É útil observar como a presença de Garnett acrescenta um contexto adicional, ele não é só um jogador de basquete muito famoso e bem-sucedido, mas um com uma reputação desagradável de excessiva competitividade, existem muitas histórias de jogadores jovens sobre como o idolatravam até dividir a quadra com ele e descobrir que ele estava disposto a usar de qualquer golpe baixo por uma pequena vantagem competitiva (uma vez um jogador com uma condição genética que lhe faz não ter pelos o acusou de chama-lo de “paciente de câncer” durante um jogo da temporada regular). Ele funciona como um interessante espelho duplo para Howard. O filme é bem melhor do que drama de disputas trabalhistas da NBA High Flying Bird (2019) do Steven Soderbergh em articular as políticas nebulosas de um esporte praticado sobretudo por jovens negros e cujos altos lucros dependem de uma plateia branca endinheirada. Joias Brutas é baseado em múltiplas instancias de exploração predatória de pobres mineiros etíopes a atletas profissionais muito ricos cujo o corpo é exposto para entretenimento. Basquete é um desses esportes cujos jogadores podem ser transformados em números, uma série simples de estatísticas prontas para serem lidas como o consumidor bem entender (não surpreende que apostas sejam uma parte expressiva do investimento de fã seja pelo jogo de altos valores de alguém como Howard seja os jogos de fantasy, os esforços da Globo de vender o Cartola são uma forma de importar para o nosso futebol a mesma lógica). Garnett não é uma pessoa para Howard, ele é apenas dinheiro, pontos, rebotes e tocos. A conversa de incentivo no final não é sobre chegar até o Garnett pessoa, mas maximizar a máquina de estatísticas que ele representa. Um grande gesto de desumanização. A maioria das interações ao longo de Joias Brutas não é muito diferente, o mundo no entorno de Howard é completamente pós-humano, não surpreende que sua vida careça de afeto. Há algo a dizer sobre a montagem do filme (por conta de Benny Safdie e do parceiro de longa data dos irmãos e co-roteirista Ronald Bernstein) e como ela articular a relação entre a imagem de Garnett jogador de 35 anos na televisão durante os jogos com a do Garnett ator de 42 anos a interpretar a si mesmo nas sequencias dramáticas e como ela complementa essas ideias de exploração e imagens projetadas.
Autenticidade sempre foi um interesse central para os Safdie. O uso extenso de filmagens em locação em Nova York é o elemento mais recorrente entre os seus longas. Parte dos seus primeiros filmes (Traga-me Alecrim, Heaven Knows What) é baseado em alguma forma de autobiografia (no primeiro dos Safdie com seu pai, no segundo da atriz principal Arielle Holmes). Os thrillers mais recentes são baseados no choque de colocar estrelas de Hollywood (Robert Pattinson em Bom Comportamento, Sandler em Joias Brutas) com uma série de tipos de Nova York majoritariamente interpretados por não professionais. Existe muito de detalhes dos diversos mundos pelos quais Howard se move que reforçam a sensação de um mundo vivido. Os rostos amadores recorrentes são importantes, mas é a disposição dos Safdie de confiar o drama a eles que se destaca mais. A presença de Garnett é muito importante, mas também é a de Julia Fox, uma estilista e modelo, em cujos ombros boa parte do peso dramático do filme é depositado. Ela entrega o filme quase tudo o que ele tem de humanidade e boa parte do clímax é dado a ela e não a Sandler (numa sub trama no qual quase nenhum ator profissional participa). Num filme sobre transições de capital cada vez mais artificiais, esta crença na autenticidade é um gesto profundamente político.
Ao mesmo tempo, o drama é muito escrito e a atuação de Sandler não é sobre se misturar com um mundo realista, mas sobre usar seu carisma de estrela de cinema para se mover por ele. De fato, uma das minhas maiores discordâncias com a recepção de Joias Brutas é como ela apresenta a atuação de Sandler como uma espécie de exceção na carreira dele, o que tanto ignora que Sandler se envolve em algum tipo de filme de autor a cada 2-3 anos (ele estava na competição de Cannes dois anos atrás com o The Meyerowitz Stories do Noah Baumbach por exemplo), independente da qualidade deles, e Howard não é uma quebra radical da sua perona cinematográfica, mas muito como no seu papel em Embriagado de Amor do Paul Thomas Anderson, uma versão excessiva e distorcida de muitos dos tiques e desesperos que já eram parte integral do seu trabalho cômico. Joias Brutas é até certo ponto uma discussão sobre masculinidade judaica, deixo o assunto para gente mais capacitada do que eu, mas nesses termos ele se emparceira tão bem com o vencedor do Urso de Ouro de Berlim Synonimes do Nadav Lapid como com o Zohan: Um Agente Bom de Corte do próprio Sandler. Ele está ótimo aqui, mas Howard é um personagem muito próximo dos seus interesses habituais, só jogado num contexto dramático diferente. O frescor da sua atuação tal qual existe é muito mais em como ele negocia isso. Joias Brutas também é montado como um thriller tenso e os Safdie acrescentam muitos elementos absurdos a ação, como Jonathan Rosenbaum observou a muito bem imaginada loja de Howard tem algo de um set de um filme de Jerry Lewis, particularmente a porta que funciona de maneira misteriosa e serve de elemento dramático chave durante o clímax. Lewis lançava mão desses elementos de cena exagerados para efeito cômico, enquanto os Safdie reforçam o aprisionamento paranoico de Howard, mas ambos servem para sublinhar o mundo instável no qual os personagens vivem. O uso de absurdismo como comentário sobre o mundo instável de Howard é também recorrente nas cenas com os capangas de Bogosian cujas ameaças violentas são ao mesmo tempo sempre assustadoras e possuidoras de certa qualidade cartunesca.
E há ainda as próprias joias do título. Elas permanecem suspensas sobre tudo, uma metáfora em transformação, ao mesmo tempo práticas e metafisicas. Elas são dinheiro, mas existem além das compensações monetárias tradicionais. Elas são assombradas por uma qualidade fantásticas e ao mesmo tempo ancoradas no mundo de Howard. Se como personagem ele é o Sísifo do capitalismo tardio buscando alcançar sua pulsão da morte, as joias são essa promessa sempre alusiva de algo mais. É a motivação final do viciado, há algo sempre pronto a acontecer, nós vamos vencer, nós vamos ter um grande lucro, o último filme super hypado vai justificar cada elogio escrito pelos críticos, as joias serão tudo que elas podem ser. Somos uma sociedade viciada e Joias Brutas oferece as suas contradições e seu desejo de desaparecer nas suas obsessões um corpo completo. A certeza de que não estamos vencendo, mas dando passos rápidos ao desaparecimento.