
Better Days
(English version here)
2019 não foi exatamente um bom ano para o cinema chinês. Em meio as comemorações do aniversário de 70 anos da revolução comunista, o PCC endureceu consideravelmente as já nada simpáticas regras de censura. Em fevereiro, dois filmes (Better Days do Derek Tsang e One Second de Zhang Yimou foram retirados de última hora da competição do festival de Berlim por motivos “técnicos” (como a maioria dos governos autoritários os chineses são bem transparentes quando querem dar demonstrações de força). O tom foi mantido durante o ano e é sensível a impressão de um estreitamento de conteúdo que vai para além de impedir críticas diretas ao governo. Se o talento de cinema quer que seus filmes sejam lançados no mercado chinês, precisam ser cada vez mais cuidadosos com o que filmam e também com o que dizem em público. Podemos por exemplo observar as diferenças radicais de posicionamento de artistas de Hong Kong quanto aos protestos políticos locais em 2014 e 2019. Cinco anos atrás, houve presença constante de artistas locais a despeito de rumores de possíveis punições do governo chinês (o ator Anthony Wong está numa lista cinza desde então), a despeito das semelhanças ideológicas e das mesmas discussões sobre repressão violenta da polícia, a presença de famosos deixou de ser comum e enquanto poucas vozes (Jackie Chan, Wong Jing) se posicionaram pró-governo, não faltaram demonstrações de simpatia para com a polícia local e o PCC nos últimos meses (durante a blitz de divulgação do seu novo blockbuster Ip Man 4, Donnie Yen foi rápido em apontar que estava com o governo para ficarmos num caso recente) enquanto como o crítico Shelly Kraicer bem apontou cineastas simpáticos aos manifestantes só podem fazê-lo pela via do silêncio.
Neste contexto, é bom observar dois filmes de realizadores de Hong Kong voltados para a China continental lançados recentemente: o já mencionado Better Days e Chasing Dream, último longa de Johhnie To e as maneiras com que negociam com tais pressões. Após Berlim, o lançamento comercial do filme de Tsang terminou adiado múltiplas vezes até finalmente ser liberado com cortes para amenizar sua cena principal e um prólogo e epilogo novos com clara função de agradar as autoridades. To não teve nenhum problema com a censura (ao menos até onde se sabe), mas vale mencionar que tão logo o governo confirmou a “autorização para lançamento” de Chasing Dream, o cineasta anunciou que não participaria mais do júri da edição deste ano do Golden Horse, tradicional prêmio de Taiwan que cobre o todo do cinema chinês, alegando razões pessoais. Em 2019, pela primeira vez em 25 anos nenhum filme da China Continental se inscreveu no Golden Horse e os poucos filmes de Hong Kong inscritos foram produções independentes sem grandes expectativas no mercado chinês. Num país onde o capital e o governo se misturam de forma radical o braço da censura encontra muitas formas. Chasing Dream é o filme mais invisível de To no ocidente em cerca de duas décadas e se o hábito da cinefilia ocidental de encarar seus divertimentos fora do filme de ação com desinteresse tem a sua parte, a invisibilidade tem muita relação também com a forma como o filme se esforça para se adaptar a uma lógica do cinema chinês mais mainstream.
Derek Tsang primeiro chamou grande atenção três anos atrás com Soulmate, um dos meus filmes chineses favoritos da década. Uma reimaginação de Comrades, Almost a Love Story do Peter Chan (que produziu Soulmate) no qual o pai do cineasta Eric Tsang tivera um papel coadjuvante chave, com o casal heterossexual substituído por duas amigas cujos laços emocionais são testados ao longo de um panorama histórico chinês de mais de década. Better Days é outro filme sobre a juventude chinesa. É um filme que lida com o bullying nas escolas chinesas, mas também sobre as pressões que os jovens chineses passam durante o período da versão local do vestibular, pela ideia de que mesmo numa sociedade supostamente comunista, as próximas décadas daqueles jovens vão ser decididas pelas respostas a algumas perguntas de um teste e a crueldade absurda envolvida nisso. Better Days e Chasing Dream tem em comum serem filmes sobre como a lógica de sucesso abarca toda a sociedade chinesa e o filme de Tsang é um olhar bem amargo para ela.
A maior parte do filme se dedica a um romance entre a protagonista (Zhou Dongyu, tão ótima aqui quanto em Soulmate) e o jovem delinquente (Jackson Yee) que assume o papel de seu protetor depois que ela vira alvo de bullying na escola. É um filme sobre ser ou não incluído na sociedade chinesa, sobre abandono num estado policial. Há toda uma estrutura social no entorno dos jovens personagens, mas ela é muito mais eficaz em vigia-los do que protege-los. Tsang é muito hábil em transforma o melodrama adolescente numa arma política, todo o sentimento a flor da pele e de alienação das personagens se transformam numa extensão de uma ideia de abandono. Uma sociedade ótima em policiar, mas péssima em cuidar. Não surpreende que o governo chinês tenha se incomodado tanto com ele.
Os créditos finais destacam novas políticas sobre bullying do governo (a ação cuidadosamente localizada no passado recente) e as cenas contemporâneas reforçam a ideia de que a mão do estado reeduca com sucesso. As novas sequencias são tão propagandísticas que somente o mais literalista dos espectadores poderia leva-las a sério, o público-alvo deve ficar com a imagem melodramática das duas vans policiais indo em direções opostas e não com o “e tudo ficou bem” posterior. Boa parte da crítica ocidental se concentrou em discutir o filme a partir do bullying que está mesmo no centro dele, mas é útil observar que se ele é uma obra política forte é justamente por como posiciona o pátio das escolas como sintoma de um mal-estar maior, como a sua crítica é mais sistêmica. Tsang sabe que por um close-up de Zhou Dongyu emocionada é possível se contrabandear muita coisa.
Já em Chasing Dream o que primeiro impressiona é como tudo em seu mundo soa artificial. É outro romance entre personagens dispares, aqui um lutador de MMA popular e uma aspirante a cantora que se aproximam pela proximidade deles de um agiota. É um melodrama musical, espécie de Jacques Demy de uma sociedade de reality show. Não deixa de ser um contraponto interessante para o musical anterior de To, Office (2015) que era um filme bem mais respeitável cobrindo um objeto (os jogos de poder de uma grande empresa) idem, mas que no seu uso de espaço cênico teatral é igualmente artificial por vezes sugerindo um aprisionamento das suas personagens pelos seus desejos.
O que difere Chasing Dream é como ele se mistura com seu caráter popularesco e a maneira com que lida com este mundo de ascensão social pela popularidade. Como muitos dos filmes de Johnnie To, Chasing Dream foi co-escrito por Wai Ka-fai e as noções de ironia e absurdo do trabalho mais pessoal de Wai estão mais presentes aqui do que em qualquer outra das suas colaborações recentes. As cenas no reality show em especial deixam a imaginação irônica de Wai dominar. Wai e To parecem dedicados a esta ideia de falsidade de mundo e é especialmente perversa quando considera-se a forma como o filme muitas vezes faz referência a Thow Down, um dos filmes mais peculiares e pessoais de To. Há certa altura quando o casal tem a inevitável separação de meio de filme ele promete que colocara o CD dela em toda as unidades da sua futura cadeia de restaurantes e ela reforça para que ele use os CDs originais e não os piratas. Toda uma ideia de real e falso numa sociedade obcecada com consumismo numa rápida troca. As noções de ironia de Wai são necessárias para contrapor o material que compra a ideologia de alpinismo social chinês muito mais do que qualquer outro filme que To e sua equipe da Milkyway estiveram envolvidos. Não há aqui espaço para as observações sociais mais amargas dos dois Don’t Go Breaking My Heart, por exemplo. Se o filme sugere uma China no qual os limites entre a imagem televisiva e o que ela vende e a sociedade chinesa como um todo são muito tênues, ele também parece muito próximo de capitular para a mesma. Da mesma maneira, a parte da trama que lida com MMA tem um vilão lutador americano que reforça as piores tendências xenofóbicas com que o cinema de ação chinês vem apresentando suas noções nacionalistas nos últimos anos. Não é propriamente novidade no cinema comercial chinês, mas a maneira como consumismo e nacionalismo são articulados aqui é inédita em To. A censura do capital é por vezes mais cruel e difícil de transpor que a governamental.
Chasing Dream funciona sobretudo como um catalogo para as habilidades de encenador de To e que o filme seja bem consciente de que elas por vezes funcionem no vácuo é o máximo de crítica que ele pode propor. O filme é bem hábil em construir este espaço televisual sonhado no qual nada parece crível e contrapô-lo a sentimentos genuínos do relacionamento principal como se To tivesse se lançado o desafio pessoal de tentar encontrar alguma verdade no meio do falso. O melodrama contém uma dose muito forte de masoquismo como se só a dor pessoal permitisse um sentimento verdadeiro nos momentos que não fossem mediados pela televisão. Chasing Dream segue todo a lógica de números musicais independente deles virem acompanhados de música, sequencias semi independentes no qual a teatralidade da encenação encontra o absurdo das situações e nesses momentos o filme flui com força. Um triunfo para o Johnnie To estilista se não necessariamente para o Johnnie To autor.
A certeza observando não só esses dois filmes mais outros lançados na China este ano, é de que está cada vez mais difícil para realizadores que buscam expressar algo minimante fora do discurso oficial aceito no país sem apelar para um contrabando cuidadoso ou aceitar os riscos de um texto bastante incoerente.