(English version here)
Ontem pensando no massacre de Paraisópolis postei nas minhas redes sociais um link de You Tube de Auto de Resistência, documentário de Natasha Neri e Lula Carvalho sobre o tribunal de justiça responsável pelos assassinatos cometidos pela polícia militar do Rio e mencionei que se tratava do filme mais relevante lançado por aqui nos últimos dois anos e um amigo perguntou se eu havia escrito algo sobre o filme e me parece justo deixar umas palavras aqui até porque ele merece ser mais visto.
Auto de Resistência não é um filme dado a grandes voltas: temos o tribunal, os processos, o circo político entorno deles, as imagens de celulares e câmeras de segurança dos atos, os parentes das vítimas (quase sempre mães negras). O filme apresenta tudo isso sobre uma ideia de cinema direto. Existe por parte dos cineastas a certeza que aquelas imagens por si só bastam. Sabemos o suficiente sobre os números de morte em ações da polícia do Rio (1546 nos primeiros 10 meses desse ano). O tribunal que acompanhamos não é o que julga as ações, mas a procedência das denúncias. 2% vão a julgamento, um número bem menor termina num veredito de culpa.
O filme é um triunfo do cinema processo. Seu sucesso político se resolve na forma e o que ela diz sobre os processos que acompanhamos. A linguagem da justiça é uma linguagem de violência, o filme nos lembra. Reduzir vidas aos termos do legalês é um gesto político desumanizador. A presença de um crápula como Flavio Bolsonaro usando o tribunal como palanque já é ruim por si só, mas os simples gestos da corte, a escolha de palavras para se referir a vítimas e atos violentos são brutais por si só. Pessoas viram números e dados judiciais, o governo as matam duas vezes (ou melhor múltiplas vezes já que o crime se repete a cada momento do processo). Neri e Carvalho sabem que a frieza do cinema direto só aumenta o horror do que registram. Não há necessidade de grandes gestos retóricos para explicar o cenário aterrador do filme, basta o encontro do processo judicial com o processo do cinema. As imagens das mães falam por si só, não precisam de grandes retoques.
O que Auto de Resistência consegue ao longo dos seus 104 minutos é registrar de forma sóbria o que significa o assassinato patrocinado pelo estado. Ao filmar como o judiciário lida com ele, expande nossa visão do genocídio negro como política de estado. Como Paraisópolis e a velocidade com que o governador tratou de garantir a inocência dos policiais presentes, é uma política que vai além do estado do Rio de Janeiro.
Uma última observação Lula Carvalho fez a fotografia dos dois Tropa de Elite (de longe a melhor coisa dos filmes eu diria) está aqui um justo mea culpa.