O tempo do Paulo Sacramento é fascinante. Ele lançou Riocorrente, seu primeiro longa de ficção, no Festival de Brasilia de 2013 e este O Olho e a Faca na Mostra do ano passado a cerca de uma semana das eleições. Esta ai um cara com bom pulso para o termômetro do país, mesmo que isso talvez não ajude a carreira dos filmes; o mal estar panela efervescente do Riocorrente foi encarado no máximo como um sintoma, este aqui ignorado quase por completo seja na época, seja no lançamento comercial meses atrás. Os dois filmes se completam muito bem como retratos de ressentimento e violência obliqua. A verdade é que desde Juvenilia (1994), não tem ninguém que trabalha tão bem a aproximação com o fascismo inerente do brasileiro. À época do lançamento de Riocorrente o filme foi confundido muito com Junho de 2013 e me pergunto se revisto hoje ficaria mais claro o quanto existia de ressentimento e mesquinharia na panela de pressão do filme.
O terreno de O Olho e a Faca é a princípio menos amplo do que o painel de Riocorrente: um drama existencial de matriz khouriana sobre um petroleiro cuja vida desanda quando recebe uma promoção. A oposta da encenação do filme é muito subjetiva. Vemos tudo pelo olhar do personagem de Rodrigo Lombardi, boa parte da narrativa relevante permanece sugerida no fora de quadro, o trabalho de desenho de som é bem opressivo no esforço de localizar o espectador no espaço deste personagem. Boa parte da má recepção do filme tem a ver com essa aposta e um hábito ruim nosso (e uso a primeira pessoa do plural porque incluo a crítica nisso) de confundir subjetivação e identificação.
Muito da força do filme surge justamente do contraponto entre esse olhar subjetivo e as tendências documentais do cinema de Sacramento. O primeiro ato é excepcional no seu trabalho de descrever o trabalho na plataforma de petróleo, os rituais dos funcionários, os procedimentos, as políticas internas, a movimentação na geografia da plataforma. Depois que ele deixa a plataforma pela primeira vez, a trama em si começa, e este efeito se dilui um pouco, mas o que permanece é o esforço de contraponto mundo/personagem. O Olho é a Faca é um filme sobre ressentimento, sobre um cara que recebe tanta coisa, mas age como se o mundo lhe devesse tudo e como se cada revés fosse inevitavelmente efeito persecutório. Ao longo da última hora do filme vemos Lombardi fracassar como chefe, como amigo, como pai, como marido, como filho, tudo de fato, menos na conta bancaria. Ainda assim segue protegido, mas com a certeza de que nada tem a ver com ele. A montagem de Sacramento é como sempre muito hábil em articular essas oposições e localizar sentidos nelas.
Paulo Sacramento jamais será acusado de um cineasta sútil, haverá momentos em que o filme nos ataca com o peso do Sergio Bianchi. Em determinado momento ele quebra a quarta parede e coloca o personagem de Lombardi para assistir Filme Demência do Carlos Reichenbach. A aproximação entre os dois filmes é bem evidente, Filme Demência é o grande filme da recessão dos anos 80, da ressaca do fim do governo militar, São Paulo S/A revisto pelo desastre Sarney. O industrial de Enio Gonçalves e o petroleiro de Lombardi vem de espaços diferentes, mas o misto de irrelevância e afluência os aproxima. São encenações de uma impotência de poder num cenário de fim da bonança econômica, mesmo que ambos os personagens sofram derrotas somente cosméticas. O Olho e a Faca não é um clássico como o filme do Reichenbach. Para começar, Sacramento podia usar um pouco do senso de humor do Carlão, se ele é identificado desde os tempos da produtora Paraisos Artificiais como um herdeiro do cinema marginal, é justo apontar que ele herdou a angustia, mas não a avacalhação. Uma exceção é o final da sub-trama sobre o filho adolescente com tendências sociopatas que termina despachado para o intercâmbio com Lombardi tentando explicar para a esposa insatisfeita em meio da despedida familiar de aeroporto mais fria imaginável “é jovem, logo passa”, mão pesada, amargo, mas eu ri. O diagnóstico do filme, porém me parece tão preciso e urgente quanto o de Filme Demência. Esta ali de forma escarrada o retrato do sujeito que subiu na vida com o lulismo e votou com gosto no Bolsonaro com a certeza de que foi sacaneado no processo.
Não se trata de um filme perfeito sem dúvidas, é desequilibrado, muito opressivo, a sequência da visita alucinatória no final superarticula o drama e o enfraquece e Sacramento provavelmente nunca será o cineasta narrativo mais natural. A opção de estruturar o filme a partir do olhar do personagem e reduzir a narrativa majoritariamente ao fora de campo é apta para o processo do filme, mas somente encenar as reações de Lombardi aos eventos a sua volta não deixa de servir como muleta para não lidar com o drama de forma mais direta e há momentos no miolo sobretudo nas cenas que retratam o fracasso do personagem como gerente em que a ação poderia ser um pouco mais clara.
Nada disso, porém reduz a força do filme. Paulo Sacramento sempre teve um olhar dos mais atentos e uma habilidade ímpar de alegorizar as próprias imagens e tudo isso é muito aparente aqui. Posso estar errado, mas até onde me lembro O Olho e a Faca é a única ficção do cinema brasileiro recente a tentar encenar a nossa farra do petróleo pós pré-sal. O movimento de queda do filme é menos um movimento existencial do que coletivo. É um cocktail de afluência, desconexão com o mundo exterior e ressentimento que Sacramento se propõe a dar corpo. É um diagnóstico justo e bem aterrador, um dos filmes mais exatos sobre a última década da vida pública brasileira. Paulo Sacramento segue conhecendo como pouco os caminhos do fascismo brasileiro.
O paulo sacramento é um dos responsáveis pela minha mudança de vida eu era um dos internos do Carandiru e participei do documentário OBRIGADO Paulo por acreditar na recuperação das pessoas Eu sou Joel aparecido e fiz a noite do detento uma da partes finais do filme “obs agora em 2023 fará 20 anos esse documentário gostaria muito de encontrar o Paulo e agradecer ..