
Paria (2001), de Nicolas Klotz
Acontece de amanhã, 18, até sábado, 22, uma mostra dedicada aos filmes de Nicolas Klotz na Caixa Cultural no Rio. Recomendo bastante já que acho os quatro longas mais recentes dele que compõe o centro da Mostra (que ainda exibe alguns curtas, alguns documentários, um making off divertidíssimo da filha dele sobre as filmagens do A Questão Humana, etc) dos mais ambiciosos e interessantes do cinema francês recentes. Klotz (que trabalha sempre em parceria com sua esposa Elisabeth Perceval) as vezes é um tanto punitivo demais na sua encenação, mas acho que ele vai fundo em alguns elementos da Europa contemporânea como poucos dos seus pares. Recomendo especialmente Paria (2001) que quase nunca passa e conta com uma atuação incrível de Gerald Thomassin, o jovem assassino de Doillon, e é um tanto menos negativo que seus filmes posteriores.
Aproveito para repostar um artigo sobre a chamada Trilogia dos Tempos Modernos da époxca do lançamento comercial de A Questão Humana. Acho que os dois textos meus no catálogo melhores do que este, mas foi uma primeira tentativa valida de tentar tratar do que torna Klotz um cineasta interessante.
A Política do Gesto
De um cineasta que se dispõe a chamar seu filme de A Questão Humana não podemos dizer que ele peca pela falta de ambição. È imenso o trabalho a que Nicolas Klotz se propõe na sua chamada trilogia: nada menos que demonstrar como o mundo contemporâneo reflui sobre a maneira como seus habitantes se portam e movem, sejam eles um mendigo parisiense ou um executivo de uma grande corporação. Paria (2001) lida com dois jovens sem um tostão que, em meio a uma série de dificuldades romântico/financeiras, acabam, por acidente, conduzidos a um abrigo para mendigos; A Ferida (2004) apresenta o mundo dos imigrantes recém chegados a França; enquanto A Questão Humana (2007) mostra executivos de uma multinacional. Três universos bem diferentes que são abordados em registros à primeira vista bem variados – à parte por um gosto por misturar ficção e não-ficção – mas que são unidos, sobretudo, por uma ênfase na força do gesto.
A seqüência de abertura de Paria serve como cartão de apresentação: um jovem, talvez bêbado, talvez chapado, dança de forma agitada num metrô desolado. A força da sua performance lança um peso sobre todo o filme, sobretudo quando os dois protagonistas alcançam o abrigo e tomam contato com um outro tipo de corpo (cortesia de não-atores que Klotz encontrou nas ruas de Paris). A exuberância inicial se reafirmando com mais força; o valor político do cinema de Klotz é encontrado na autenticidade do corpo. Triunfo de cinema materialista, onde resistência se dá pela forma como o corpo se move. O filme chega ao clímax quando Momo, o mais trambiqueiro dos protagonistas, tem que dar uma outra performance – iluminada pela presença de cena extraordinária de Gerald Thomassin, o pequeno assassino de Doillon – desta vez diante da justiça francesa. Paria é o mais agradável dos filmes de Klotz, cheio do tipo de energia e sentimento de descoberta que acompanha filmes onde o cineasta parece encontrar a exatidão do seu olhar. Um filme de encontros que se move com a certeza absoluta de todos os envolvidos de que destes choques estão extraindo algo especial.
O olhar em A Ferida já é mais visivelmente amargo; conseqüência de Klotz se entregar ao trabalho e a experiências de seus não-profissionais. É o mais irregular dos filmes da trilogia, mesmo assim inclui algumas das seqüências mais impressionantes de seu cinema. As primeiras imagens nos jogam à experiência de uma mulher que tenta em vão desembarcar na França, mas encontra apenas a brutalização e violência do aparelho burocrático. Nestes momentos, Klotz avança sobre a proposta de cinema físico e político contido em Paria e nos apresenta uma experiência concreta a que raramente temos acesso. Depois, quando Blandine é finalmente liberada, o cineasta se enamora um pouco demais pelo encontro entre a ferida física e a emocional que ela carrega e o filme gira um tanto em falso. Klotz não parece muito confortável perto de Blandine, passado o choque inicial, e o foco vai aos poucos se transferindo para seu marido Papi (ou talvez Klotz simplesmente reaja melhor ao ator, que ele inclusive traz de volta para uma ponta em A Questão Humana) e o filme reencontra a sua força.
Se A Questão Humana é o mais apocalíptico dos filmes de Klotz é porque a autenticidade do corpo é colocada em cheque pela primazia da linguagem. É o filme em que as contribuições da esposa e roteirista Elisabeth Perceval são mais visíveis, onde cada palavra é escolhida com o máximo cuidado. Tudo em A Questão Humana é codificado e seco. Emmanuel Burdeau, num texto na Cahiers du Cinema, mencionou que há uma bela história no filme, que termina engolida pela História. Alguns (Cássio Starling Carlos, na Folha de SP, por exemplo) parecem incomodados justamente com o teor à primeira vista ilustrativo do filme, enquanto outros reagem positivamente justamente a ele. Todas estas reações parecem perder justamente que a beleza do filme nasce justamente de como Simon (Matthieu Amalric) navega por estes códigos. A aridez intelectual do filme espelha a aridez do universo de trabalho que ele desnuda. O mote central do cinema de Klotz, a criação de um novo corpo que melhor navegue em nossos tempos modernos, é o elemento que precisa saber se impor a esta visão.
A Questão Humana é à principio um thriller corporativo, no qual Simon tem que navegar por entre uma disputa de poder de alto executivos. Com o tempo, ele descobre coisas sobre o passado deles e a razão por trás do estado de constante melancolia do seu chefe, que o obrigam a abrir mão da sua impassividade. Há momentos em que se assemelha a um filme de contaminação à Cronenberg, mas a doença é um mal estar contemporâneo que vai aos poucos tomando conta em definitivo de Simon. A revelação é menos importante nela mesma do que nas portas de linguagem que ela abre: a jornada de Simon é a de como navegar e se divorciar das coisas tal como ele se habituou a descrevê-las. Trata-se no fundo de uma investigação visual com a intenção de devolver o valor físico às coisas, Simon precisa entrar em sincronia com o próprio, reeducá-lo, enfim. Para esta investigação, Klotz lança mão de cada recurso que tem em mão, seja o roteiro cuidadosamente elaborado de Perceval, seja o trabalho dos seus atores profissionais (Amalric, Lonsdale, Castel, todos formidáveis), seja a consciência de si mesmo dos não-profissionais que preenchem a maior parte das cenas, seja o uso impressionante de música – sempre um ponto forte em seu cinema (incluindo aqui a melhor rave de todo o cinema). Klotz responde à perversão da linguagem de maneira a atacá-la por todos os ângulos, A Questão Humana literalmente termina quando esgota todas as suas possibilidades como imagem, numa tela preta, enquanto a voz off de Amalric conduz seu minuto final, não um off qualquer, mas um em que as palavras recuperaram seu valor físico e concreto.
Klotz? Filipe,você tem o dom de trazer à tona nomes de pouca-fama do cinema.Sem tatear,pergunto: Quais são os diretores obscuros de seu maior apreço?
Acho difícil de dizer porque nunca acho fácil definir o que seria ou não um cineasta obscuro. Klotz por exemplo é conhecido o suficiente para ter um retrospectiva aqui, algo que alguns cineastas em atividade que me interessam bastante como Herman Yau, Heinz Emigholz ou Jean Charles Fitoussi (para ficar em três nomes mencionados no blog recentemente) teriam muita dificuldade em conseguir.