Pensando no pior filme de Clint Eastwood

English version

Há algumas semanas, o grupo Estação promoveu a primeira parte de uma retrospectiva ampla de Clint Eastwood no Rio, e acabei pensando não nos muitos destaques de sua filmografia, mas no que considero o pior filme que ele assinou como diretor: The Rookie-Um Profissional do Perigo, de 1990. Por que falar de um filme ruim sobre o qual quase ninguém pensou, além de ser exibições tarde da noite de TV a cabo, pelos últimos 30 anos? Não tenho certeza, mas acho que Clint Eastwood é um artista importante e, portanto, seus erros podem ser intrigantes. As pessoas que gostam de caricaturar o autorismo muitas vezes agem como se ele servisse para desculpar trabalhos inferiores, mas é principalmente uma maneira de pensar sobre os filmes e extrair algo mais deles. Assim, Rookie é um filme ruim, às vezes bem ruim, mas também é um filme de Clint Eastwood e suas conexões com os filmes ao redor fazem com que valha mais a pena refletir sobre ele, se não necessariamente assisti-lo, do que alguns outros filmes de ação competentes feitos por volta de 1990.

Na verdade, pensei muito em Rookie ao longo dos anos, apesar de não ter assistido a ele do início ao fim fazia algumas décadas antes da semana passada (embora tenha visto partes na TV de vez em quando). A principal questão que sempre me chama a atenção é porque ele realmente o dirigiu. Eu sei por que o filme existe. Eastwood também dirigiu e estrelou Coração de Caçador no início daquele ano, um roman à clef sobre a pré-produção de Uma Aventura na África e a obsessão do diretor John Huston em caçar um elefante, que é um de seus filmes mais alienantes e mais bonitos. O mesmo ocorreu alguns anos antes, quando, em troca do financiamento pela Warner da sua ótima biografia sobre Charlie Parker, Bird, ele estrelou um quinto filme de Harry Callahan, Dirty Harry na Lista Negra.

Aquele filme foi assinado por seu dublê de longa data, Buddy Van Horn, e há um padrão muito consistente desde a década de 1970 em que Eastwood confiava seus esforços menos ambiciosos a seus amigos, como Van Horn, ou a novatos de sua produtora Malpaso, como o roteirista James Fargo. O nome de Eastwood, por exemplo, só aparece na mais ambiciosa das continuações de Dirty Harry (Impacto Fulminante) e apenas uma das suas ocasionais tentativas de fazer uma comédia de ação grosseira mais ao estilo de Burt Reynolds  (Rota Suicida). No entanto, Rookie é um filme de Clint Eastwood; mesmo que ele mal se preocupe em encontrar uma ligação com o material, ele parecia muito mais envolvido com Pink Cadillac, dirigido por Van Horn no ano anterior. Ele se preocupou tão pouco com Rookie que interrompeu as filmagens por quase uma semana para poder apresentar Coração de Caçador, em Cannes (isso custou uma pequena fortuna à Warner para satisfazê-lo, talvez ele estivesse sendo passivamente agressivo). Eastwood pode ser um mestre do duplo significado, oferecendo ação empolgante suficiente ao mesmo tempo em que sugere a alienação e o custo por trás dela, mas não há nem um aceno nesse sentido em Rookie. O filme poderia se passar facilmente por qualquer um dos muitos filmes de dupla de policiais que foram lançados na época.

Seria fácil comparar Rookie com algumas continuações que vieram na mesma época, como Máquina Mortífera 2 ou 48 Horas Parte 2. O filme é mais caro do que a média dos filmes policiais de Eastwood. Como um astro de cinema da velha guarda, seus filmes tendem a manter o foco nele, e apenas Firefox, de 1982, com muitos efeitos especiais, poderia ser considerado semelhante, e esse filme era muito consciente disso (seu clímax até mantinha o rosto do ator coberto). Em vez disso, Rookie se apresenta como um filme de ação elaborado, com muito trabalho de dublês (o press release da época afirmava que ele empregava mais dublês do que qualquer outro filme de Hollywood até então), com várias perseguições de carro e muita destruição violenta. Ele cumpre o prometido; as perseguições, em particular, são encenadas com muito cuidado e a destruição tem um certo impacto. Nesse quesito, não é muito diferente de 48 Horas 2, só que Walter Hill é um bom diretor de ação, portanto, mesmo em um filme menor como aquele, a ação limpa tende a se destacar, mantendo-se integrada a todo o resto, enquanto em Rookie parecem existir dois filmes separados acontecendo ao mesmo tempo.

Eastwood pode estar seguindo as tendências da época, mas, a esta altura, ele não se sente confortável nesse tipo de registro. A violência é um dos principais temas de seus filmes, mas a ação imprudente e a grosseira não são seu território. Ele é um cineasta muito sóbrio e sombrio; na verdade, em seus piores momentos, ele pode ser um tanto excessivamente sisudo, e ele leva todas as situações clichês de Rookie, e esse filme é todo composto de situações clichês, de forma bastante objetiva (quando Eastwood é apresentado com um parceiro negro, sabemos que o cara estará morto ao final da primeira cena de ação, por exemplo). Ele não pode se incomodar com estabelecer um tom relaxado entre os protagonistas que um filme como Máquina Mortífera 2 utiliza, nem com a irritação cômica entre eles, como em 48 Horas 2, o roteiro pede que Eastwood trate seu par Charlie Sheen como um igual, mas Eastwood nunca se preocupa em desenvolver uma química entre eles, e sua frustração com o jovem acaba sobrecarregando o filme. Em condições melhores, Eastwood consegue passar fácil pelas partes mais superficiais de seus roteiros, elas terminam meio jogadas e desimportantes, as cenas que estão lá por necessidade para que possamos chegar às partes boas, mas ele não consegue fazer isso aqui, pois não está conectado a nada. O roteiro péssimo trata muito dos problemas com o pai do personagem de Sheen e da necessidade de Eastwood como uma figura paterna substituta, e o cineasta elabora demais e enfatiza tudo isso, tornando o filme ainda mais insosso. Ele também deixa Sheen na mão, é a pior atuação principal em qualquer um de seus filmes. Comparado com o muito mais prazeroso Dirty Harry na Lista Negra, o filme é pesadão, sem nada que realmente o sustente.

Em um dos gestos mais típicos de Eastwood, as muito bem executadas perseguições de carro executadas se passam todas à noite e são feitas com a fotografia de luz escura, que lhe é habitual, de modo que o excelente trabalho dos dublês geralmente ocorre em meio a um borrão escuro. Apesar de tudo que se escreveu sobre Eastwood como um cineasta clássico e grande insider de Hollywood, ele não é conhecido por mudar o tom entre os filmes. Há uma estética e uma pegada para um filme de Clint Eastwood, que ele desenvolve ao longo dos anos 70 e 80, e até mesmo um filme leve como Cowboys do Espaço tem uma carga melancólica acentuada. Seus filmes raramente servem ao sistema, mas tiram proveito de seus recursos. Um trabalho como esse realmente torna esse processo claro. Portanto, Rookie tem muita ação apresentada de uma maneira bastante perversa e parece que coloca sua violência e destruição em evidência sem nunca se sentir totalmente confortável com elas, mas também nunca oferece nenhum comentário sobre isso – o pior dos dois mundos. É bem possível que Rookie fosse um filme mais agradável de assistir se todos esses recursos tivessem sido dados a alguém mais disposto a jogar o jogo. Na forma atual, é ainda pior, mas também mais intrigante em todas as suas deficiências.

Se Rookie é ainda lembrado por alguém mais de três décadas depois, é pela cena muito desagradável em que Eastwood é capturado e torturado sexualmente por Sonia Braga. Rookie é, sem dúvida, o maior papel que Braga conseguiu durante seus dias de Hollywood após O Beijo da Mulher Aranha; seu nome está até no trailer. É um papel bem retrógrado: ela interpreta a quase silenciosa segunda no comando do criminoso de Raul Julia, cujo gênero, sexualidade explícita e latinidade supostamente se somam num exotismo perigoso. Ela finalmente tem sua grande cena, jogando com um Eastwood imobilizado. A cena se estende por mais de 5 minutos, com cada detalhe da submissão de Eastwood sublinhado, juntamente com um toque voyeurista de que está sendo filmado por uma câmera local e reproduzido em telas de TV que implicam o público.

Os primeiros trabalhos de Eastwood, tanto como cineasta quanto como astro, estão repletos de cenas de abuso sexual, com ênfase na dinâmica de poder perversa envolvida, com o próprio ator, claro, quase sempre como o abusador. Ele problematizou isso de forma interessante em meados dos anos 80 em Um Agente na Corda Bamba, um filme que ele não assinou, mas que, segundo todos os relatos, ele dirigido sem crédito, no qual ele interpretou um policial com gosto por sadomasoquismo que acaba lidando com um serial killer que permanece muito próximo de suas fantasias, com a violência sexual real e imaginada colocadas em conflito. Essas cenas desapareceram de sua filmografia mais madura, embora crimes de natureza sexual aparecem como pano de fundo em vários de seus filmes dos anos 90 (Os Imperdoáveis, Poder Absoluto, Meia-noite no jardim do bem e do mal), e a ameaça da violência contra a mulher continua sendo uma justificativa recorrente para a ação. O narcisismo de Eastwood pode se manifestar tanto em um tom, desagradável, ele como a figura violenta de outro mundo que paira sobre a ação, quanto, paradoxalmente, em um certo masoquismo, muitas vezes com seu corpo sendo castigado pelo mundo violento ao seu redor. A cena com Braga é bastante desconfortável e parece muito desconectada do filme ao seu redor, mas é o único momento em que sua imaginação parece totalmente engajada ao longo de todo o filme. Ele oferece seu corpo como um objeto de contemplação erótica e de punição narcisista. Curiosamente, Eastwood nunca tem direito a uma vingança como manda o clichê; quando Braga é eliminada tardiamente, é em uma cena com Sheen.

É muito interessante que Rookie seja um pagamento por Coração de Caçador, já que esses dois filmes não poderiam ser mais opostos, e não apenas porque sugerem o autor ambicioso em ascensão e o herói de ação violento. Coração de Caçador é um filme sobre o machismo americano de meados do século XX – vamos chamá-lo de ideal de Hemingway – do qual John Huston foi, sem dúvida, a figura mais famosa de Hollywood, suas fantasias e suas consequências. O americano grosseiro vai para o terceiro mundo em busca de diversão e, mais importante, de realização dos desejos, deixando um rastro de destruição. Em uma das melhores cenas, Eastwood, bêbado (seu Huston é, de longe, seu melhor trabalho como ator), vê um branco local maltratando um garçom negro e decide defendê-lo. A nobreza da causa, de repente, é uma desculpa muito boa para a adrenalina da violência noturna. Eastwood não apresenta nada disso à distância; é evidente que o cinema em geral, e Hollywood especificamente, é fundamental para promover essas fantasias masculinas, e o homem sem nome/Harry Callahan de Eastwood, longe de estar divorciado disso, é uma manifestação tardia do mesmo. Uma pílula muito amarga apresentada com pouco distanciamento, ainda menos pessoas assistiram a Coração de Caçador do que a Rookie, e esse filme continua curiosamente menos conhecido do que seus filmes celebrados do início dos anos 90, apesar de ser tão bom quanto.

Passemos para Rookie, que é exatamente essa fantasia masculina. Um filme cuja violência irresponsável não tem nenhuma consequência pessoal ou física, repleto de cenários em que os homens conseguem provar a si mesmos e previsto na noção de seu mundo como um playground para que um menino possa aprender, por meio de uma figura violenta positiva, a controlar seus próprios desejos de macho de uma forma mais produtiva. Há até mesmo uma cena em que Sheen destrói um bar de motoqueiros apenas para expressar suas frustrações. Nada disso é oferecido em forma de comentário. Se os dois filmes oferecem alguma dialética, é por pura oposição. Geralmente, gostamos de pensar em artistas e pessoas de uma forma clara e fácil de explicar. Afinal de contas, as carreiras devem progredir em vez de se moverem em várias direções, de modo que Rookie não deveria vir depois de Coração de Caçador mas vem; na verdade, o fato de ele poder fazer um filme como Rookie é provavelmente o motivo pelo qual ele também pode fazer Coração de Caçador. Se a distância pode ser muito importante para observar algumas ações, o mesmo acontece com a proximidade, e a grandeza de Coração de Caçador está ligada ao fato de seu cineasta e astro conhecer muito bem a maioria desses impulsos.

Se quisermos complicar ainda mais as coisas, 1990 também foi o ano de um dos gestos menos defensáveis de Eastwood, quando fez com que a Warner lançasse, com pouca promoção, o segundo longa dirigido por sua ex-parceira de longa data, Sondra Locke, Tentação Perigosa, um bom thriller, em uma clara jogada de poder do tipo “eu dei, agora tiro”, que não ficaria deslocada em Coração ou Rookie. Como um detalhe extra, os dois papéis masculinos principais de Tentação Perigosa são interpretados por Jeff Fahey e George Dzundza, o roteirista/narrador e o produtor de Coração de Caçador, que foi filmado logo depois.

Rookie foi o último filme em que Eastwood interpretou um personagem do tipo Harry Callahan, aquele que mais contribuiu para o seu estrelato nas duas décadas anteriores. Ele completou 60 anos durante as filmagens e, obviamente, está envelhecendo e saindo da fase de astro de ação; de fato, sua idade avançada será foco com mais frequência a partir de então (em Dívida de Sangue de 2002, ele interpreta um agente do FBI que sofre um ataque cardíaco na cena inicial e é forçado a se aposentar, por exemplo). Ele nunca mais será o herói vigoroso e complicado que age primeiro e faz perguntas depois, sempre que aparece como figura de autoridade é usado como um pai falho e arrependido de algum tipo e, depois que ele começou a dirigir sem atuar com mais frequência, seus filmes costumam ter atores mais jovens, como Kevin Bacon e Jeffrey Donovan, como policiais à Eastwood, com muitos de seus tiques de ator, mas pouco ou nenhum do efeito positivo que ele geralmente exibia.

O filme sugere uma história alternativa para Eastwood. Uma na qual ele envelheceu da mesma forma que a maioria dos astros homens de cinema. O roteiro estava pronto para ser filmado até que a produção foi interrompida devido à greve de 1988 em Hollywood. Deveria ter sido dirigido pelo ex-dublê tornado diretor Craig R. Baxley, um dos muitos cineastas de ação esquecidos da época e o típico diretor de um filme desses, e estrelado por Gene Hackman e Matthew Modine. E se parece mesmo muito com um dos vários filmes de ação que Hackman fez por volta dessa época, em que sua gravidade é usada para promover uma estrela em ascensão. Muitos jovens atores, de Matt Dillon a Owen Wilson, receberam o empurrão de Hackman nas duas últimas décadas de sua carreira. Rookie geralmente funciona dessa forma: Sheen é o personagem-título e, embora haja muito foco nas peripécias habituais de Eastwood, é ele quem recebe um passado desenvolvido, problemas psicológicos e um arco dramático pensado com cuidado. Quando Eastwood é capturado no meio do filme (mais uma vez, o tipo de coisa que acontece com o protagonista veterano em um desses), ele desaparece do filme, exceto por um par de cenas rápidas com os vilões, por cerca de 20 minutos até a grande cena de Braga, enquanto a ação é totalmente entregue ao seu jovem parceiro.

Sheen é o foco do roteiro, mas Eastwood é o foco do filme, porque, ao contrário de Hackman, ele tem poder suficiente para garantir que ninguém, a não ser Clint Eastwood, seja a estrela de um filme de Clint Eastwood. Seria normal que Eastwood envelhecesse e assumisse cada vez mais esses papéis, pois é assim que as coisas geralmente acontecem. Em vez disso, ele criou uma nova imagem como cineasta respeitável e a utilizou para avançar sua persona até uma idade avançada (dois filmes diferentes de Eastwood ganhariam o Oscar nos 15 anos seguintes a Rookie). De fato, quase três décadas depois, em 2018, 14 anos após Hackman ter se aposentado por falta de bons papéis, Eastwood fez A Mula, que provavelmente terá para sempre a distinção de ser o único grande sucesso encabeçado por uma pessoa de 88 anos. Ele está terminando um novo filme que dirigiu, Juror #2, e fará 94 anos no próximo mês.

No mundo alternativo proposto por Rookie, as coisas não acontecem dessa forma. Na cena final, Sheen chega ao escritório e descobre que Eastwood acabou de ser promovido a seu novo chefe. Harry Callahan jamais seria um chefe; o herói libertário não suporta chefes, mesmo que eles trabalhem para a lei e sejam bem-intencionados; essas são as pessoas que se preocupam com as regras e estão sempre os limitando. Mesmo nos últimos filmes maduros de Eastwood, isso ainda será verdade. Mas não em Rookie, em que ele e Sheen reencenam seu primeiro encontro, com Sheen protestando contra sua nova parceira, da mesma forma que Eastwood protestou contra ele no início, para que a transferência seja completa. Eastwood pode ficar atrás da mesa, satisfeito com seu novo papel de semi-aposentado. Isso provavelmente é parte do que torna Rookie frustrante e interessante em medidas iguais, pois já que ele está jogando o jogo de forma bastante direta, sem nenhuma tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio, sua competência pode até funcionar como uma desvantagem. Pode-se facilmente imaginar o filme proposto de Baxley/Hackman como significativamente mais malfeito e mais fácil de gostar, mas essas frustrações, a grosseria e a disfunção que elas por vezes sugerem também podem ser instrutivas. Às vezes, lidar com os seus artistas favoritos pode ser uma questão de pensar tanto no fracasso quanto no sucesso. Afinal, o cinema não é um monólito.

Deixe um comentário

Arquivado em Filmes

Deixe um comentário